Jeová vai à escola: proselitismo religioso dentro de uma escola pública
e laica
Educar é um ato político – em linhas gerais, eis a
quinta-essência da pedagogia libertadora do mestre Paulo Freire. No entanto,
não é propriamente sobre política que este artigo visa tratar, e sim a respeito
da discussão em torno da religião, do Estado (laico) e da educação, discussão
essa que perpassa, sem dúvida, o campo político. Para tanto, no que concerne à
religião, o fulcro do presente artigo buscará respaldo sociológico dentro dos
limites da teoria social de Émile Durkheim (mais precisamente em sua obra As
formas elementares da vida religiosa), e no que diz respeito à educação e ao
Estado, buscar-se-á respaldo jurídico no inciso IV do artigo 3º e no artigo 33,
da Lei 9.394/96 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (mais
conhecida como LDB).
Dado o enunciado acima, trago a tona uma memória
dos meus tempos de estágio, quando ainda cursava licenciatura em pedagogia, a
fim de analisá-la à luz do que foi proposto: certo dia, a mãe de uma aluna do
2º ano do Ensino Fundamental I entregou para a professora de sua filha, isto é,
para professora da sala na qual eu estava cumprindo uma parte do meu estágio de
observação, um pacote com vários saquinhos de pipocas doces, para que os mesmos
fossem distribuídos às crianças. Até aí tudo bem, tendo em vista que não houve
relutância por parte da mestra. As atividades daquele dia prosseguiram
normalmente como de praxe, isto é, até o momento antes da entrega das pipocas.
Após distribuí-las à sua turma, a professora pediu que cada aluno erguesse a
pipoca em direção ao céu e repetisse as suas palavras. As palavras, em questão,
infelizmente eu não as recordo com total fidelidade, porém seu conteúdo
clamava, em suma, pela libertação daquele alimento, que Deus jogasse por terra
todas as oferendas impregnadas em cada saquinho de pipoca doce. As crianças, a
maioria com sete anos de idade, repetiam suas palavras com completa inocência e
ingenuidade, afinal para elas eram apenas palavras, e eu, pasmo, observando
aquela cena e pensando: “não, isso não está acontecendo comigo”. Por fim, para
aumentar ainda mais a minha surpresa, após ouvir o uníssono amém por parte dos
educandos, a professora piscou o olho pra mim e segredou-me: “oferenda a Cosme
e Damião”.
Não julgo o fato descrito acima a partir da minha
incredulidade religiosa, melhor, espero assim não ter prosseguido, afinal
sabemos que o projeto utópico da sociologia durkheimiana é impossível de ser
atingido em sua integridade, uma vez que não é possível a qualquer cientista
social o abandono radical de suas prenoções particulares, ou, como dizia Paulo
Freire, de sua leitura de mundo. Assim, no que diz respeito à religião em si, a
professora supracitada não percebe o fato de que não existem religiões falsas,
uma vez que todas são verdadeiras a seu modo, ou seja, respondem a questões que
lhe são próprias do seu tempo, que são eminentemente sociais. Por outro lado,
no que tange à questão da Educação e do Estado, foi infringido tanto o artigo
33 da LDB, o qual veda qualquer forma de proselitismo religioso e assevera o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, quanto o inciso IV, do
artigo 3º dessa mesma Lei, que promulga o respeito à liberdade e apreço a tolerância.
Por fim, é válido lembrar, à professora em questão, de que “ninguém é sujeito
da autonomia de ninguém” (FREIRE, 1999, p. 120).
REFERÊNCIA:
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 4
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
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