sexta-feira, 15 de agosto de 2014

DURKHEIM - ENSAIO DE Nº 4


O duplo suicídio de Getúlio Vargas: uma leitura durkheimiana

Já foi dito, por Charles Chaplin, que a vida é uma peça que não permite ensaios. Caio Fernando Abreu a definiu como sendo uma ponte entre dois nadas. Oscar Niemeyer ousou reduzi-la a um mero sopro. José Saramago ensaiou ser a comida e a organização coisas indispensáveis à vida. Émile Durkheim, por sua vez, assegurou que a mesma torna-se intolerável caso não se encontre nela alguma razão de ser. Entretanto, deixemos de lado tais indagações, pois não é sobre a vida que esse breve ensaio pretende discutir, e sim o seu rompimento, mais especificamente a respeito do suicídio do ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas.
Para tanto, tomar-se-á como ponto de partida a análise de dois objetos empíricos: a Carta Testamento, assinada por Vargas no dia 23 de agosto de 1954 (um dia antes de sua morte), e um conciso apanhado dos fatos mais relevantes do contexto histórico que permearam os seus governos. Sob essas condições, trabalhar-se-á, aqui, com duas hipóteses de suicídio apresentadas por Durkheim em sua obra O suicídio: a primeira delas, o suicídio altruísta facultativo; a segunda, o anômico. Disto isto, é válido perguntar: em que consiste as evidências que dão suporte as hipóteses em questão?
A hipótese de suicídio altruísta se assenta, sobretudo, nas palavras do próprio estadista, uma vez que Vargas, ao longo de toda a sua carta, demonstra o seu sacrifício perante a nação brasileira. Logo de início, afirma que os interesses contra o povo mais uma vez se desencadeiam sobre ele, de modo que precisam calar-lhe e lhe impedir de agir em defesa dos humildes, o que faz com que o mesmo siga o destino que lhe é imposto. No quarto parágrafo, assevera que nada mais pode dar senão o seu próprio sangue; logo, se os seus inimigos, representados como aves de rapina, querem o sangue de alguém, que seja o seu, pois oferece sua vida em holocausto; seu sacrifício, acima de tudo, manterá o povo unido e cada gota do seu sangue se converterá em uma chama imortal na consciência coletiva. No quinto parágrafo, a ideia de suicídio altruísta ganha ainda mais vida, uma vez que afirma ser o seu sangue o preço a se pagar pela alforria do seu povo, e é, pois, no sexto e último parágrafo, que Vargas oferece a sua morte ao povo brasileiro.
Vê-se assim, mediante a leitura do parágrafo anterior, o quão consonante se encontra a Carta Testamento com o espírito do suicídio altruísta facultativo, uma vez que a sociedade não está expressamente impondo tal suicídio, portanto, é de ordem facultativa, mesmo que Vargas o encare como um dever, um destino do qual não se pode nem se pretende fugir. Por outro lado, como afirma Durkheim, o reino do suicido altruísta é o reino no qual o homem está disposto a dar sua vida pela sociedade, e, para que a sociedade possa coagir alguém a se matar, faz-se necessário que a personalidade individual tenha pouca importância aos seus olhos – o que por vez vai de encontro às palavras de Vargas, quando este afirma ser escravo do povo.
À primeira vista, a hipótese discutida acima parece bastar. Porém, se a vida em si é um fenômeno complexo, o que dizer do suicídio como um fato social? Diante disto, fez-se necessário pensar uma segunda hipótese para o Caso Vargas, a qual, como já foi enunciada anteriormente, é a de suicídio anômico.
Diferentemente do altruísta, no qual a identificação com o coletivo é tão forte a ponto da vida não ter valor na existência individual, o suicídio anômico se dá em momentos de desorganização social, isto é, de anomia. Conforme a sociologia durkheimiana, todas as perturbações da ordem coletiva, isto é, todas as rupturas de equilíbrio, impelem à morte voluntária. Ora, o que foi a Era Vargas, do ponto de vista da organização política, senão um conflito permanente da ordem social?
À guisa de exemplos, no contexto internacional, houve não apenas a ascensão do nazismo alemão e do fascismo italiano, mas nada mais e nada menos que a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, dado o nacionalismo do Governo Vargas e a criação da Petrobras e da Companhia Vale do Rio Doce, o capital internacional se viu, de certa forma, ameaçado em solo brasileiro, uma vez que se suprimiu em grande escala o aço que o Brasil importava dos Estados Unidos, além do país passar a ser visto como um grande concorrente em outros mercados. O fim da Segunda Guerra, por seu turno, representou o fim da Era Vargas, afinal os militares brasileiros, que lutaram na guerra, voltaram imbuídos do projeto norte-americano de democracia – o qual colidia frontalmente com o a ditadura do Estado Novo. Do ponto de vista nacional, havia os movimentos tenentistas em geral, bem como particularmente o integralismo de Plínio Salgado e o comunismo de Luis Carlos Prestes. Acrescente-se, a isso, a imprensa que não lhe dava sossego mais o suposto ataque ao jornalista Carlos Lacerda, em tese praticado pelo chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, o “Anjo Negro” do Getúlio, que teve como vítima fatal o major da aeronáutica Rubens Florentino Vaz. Tal atentado foi o estopim, haja vista que nenhuma crise política resiste a um cadáver, ainda mais quando este é fardado, jovem, branco (morto por um negro), pai de quatro filhos e opositor à figura do presidente. Eis, pois, em linhas gerais, o cenário anômico no qual Vargas se encontrava e no qual ele se suicidou.
Se, por um lado, têm-se, defronte de nós, indícios que apontam para um suicídio altruísta facultativo, por outro lado se têm, do mesmo modo, indícios que sugerem um suicídio anômico. Como não podemos descartar nenhuma das duas hipóteses, uma vez que o suicídio altruísta não repele necessariamente o motor do suicídio anômico, pelo contrário, o concurso das circunstâncias (leia-se desordem coletiva) só tende a aumentar, no caso em questão, o sentimento da vítima para com o seu dever pátrio, sustentamos a tese de que o suicídio de Vargas não se classifica como sendo apenas de um tipo elementar, mas de caráter misto; logo, estamos diante de um suicídio anômico-altruísta.
Por fim, vale dizer que se é verdade que Getúlio Vargas entrou para a História, não é menos verdade que o seu suicídio entrou para Sociologia.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Assim que eu ler o seu comentário, responderei-o imediatamente. Grato pelo carinho.