O duplo suicídio de Getúlio Vargas: uma leitura durkheimiana
Já foi dito, por Charles Chaplin, que
a vida é uma peça que não permite ensaios. Caio Fernando Abreu a definiu como sendo uma ponte entre dois nadas. Oscar Niemeyer ousou reduzi-la
a um mero sopro. José Saramago ensaiou ser a comida e a organização coisas
indispensáveis à vida. Émile Durkheim, por sua vez, assegurou que a mesma torna-se
intolerável caso não se encontre nela alguma razão de ser. Entretanto, deixemos
de lado tais indagações, pois não é sobre a vida que esse breve ensaio pretende
discutir, e sim o seu rompimento, mais especificamente a respeito do suicídio do
ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas.
Para tanto, tomar-se-á como ponto de
partida a análise de dois objetos empíricos: a Carta Testamento, assinada por Vargas no dia 23 de agosto de 1954
(um dia antes de sua morte), e um conciso apanhado dos fatos mais relevantes do
contexto histórico que permearam os seus governos. Sob essas condições, trabalhar-se-á,
aqui, com duas hipóteses de suicídio apresentadas por Durkheim em sua obra O suicídio: a primeira delas, o suicídio
altruísta facultativo; a segunda, o anômico. Disto isto, é válido perguntar: em
que consiste as evidências que dão suporte as hipóteses em questão?
A hipótese de suicídio altruísta se
assenta, sobretudo, nas palavras do próprio estadista, uma vez que Vargas, ao
longo de toda a sua carta, demonstra o seu sacrifício perante a nação
brasileira. Logo de início, afirma que os interesses contra o povo mais uma vez
se desencadeiam sobre ele, de modo que precisam calar-lhe e lhe impedir de agir
em defesa dos humildes, o que faz com que o mesmo siga o destino que lhe é
imposto. No quarto parágrafo, assevera que nada mais pode dar senão o seu
próprio sangue; logo, se os seus inimigos, representados como aves de rapina,
querem o sangue de alguém, que seja o seu, pois oferece sua vida em holocausto;
seu sacrifício, acima de tudo, manterá o povo unido e cada gota do seu sangue se
converterá em uma chama imortal na consciência coletiva. No quinto parágrafo, a
ideia de suicídio altruísta ganha ainda mais vida, uma vez que afirma ser o seu
sangue o preço a se pagar pela alforria do seu povo, e é, pois, no sexto e
último parágrafo, que Vargas oferece a sua morte ao povo brasileiro.
Vê-se assim, mediante a leitura do
parágrafo anterior, o quão consonante se encontra a Carta Testamento com o espírito do suicídio altruísta facultativo, uma
vez que a sociedade não está expressamente impondo tal suicídio, portanto, é de
ordem facultativa, mesmo que Vargas o encare como um dever, um destino do qual
não se pode nem se pretende fugir. Por outro lado, como afirma Durkheim, o
reino do suicido altruísta é o reino no qual o homem está disposto a dar sua
vida pela sociedade, e, para que a sociedade possa coagir alguém a se matar,
faz-se necessário que a personalidade individual tenha pouca importância aos seus
olhos – o que por vez vai de encontro às palavras de Vargas, quando este afirma
ser escravo do povo.
À primeira vista, a hipótese discutida
acima parece bastar. Porém, se a vida em si é um fenômeno complexo, o que dizer
do suicídio como um fato social? Diante disto, fez-se necessário pensar uma
segunda hipótese para o Caso Vargas,
a qual, como já foi enunciada anteriormente, é a de suicídio anômico.
Diferentemente do altruísta, no qual a
identificação com o coletivo é tão forte a ponto da vida não ter valor na
existência individual, o suicídio anômico se dá em momentos de desorganização
social, isto é, de anomia. Conforme a sociologia durkheimiana, todas as
perturbações da ordem coletiva, isto é, todas as rupturas de equilíbrio, impelem
à morte voluntária. Ora, o que foi a Era Vargas, do ponto de vista da organização
política, senão um conflito permanente da ordem social?
À guisa de exemplos, no contexto
internacional, houve não apenas a ascensão do nazismo alemão e do fascismo
italiano, mas nada mais e nada menos que a Segunda Guerra Mundial. Por outro
lado, dado o nacionalismo do Governo Vargas e a criação da Petrobras e da
Companhia Vale do Rio Doce, o capital internacional se viu, de certa forma, ameaçado
em solo brasileiro, uma vez que se suprimiu em grande escala o aço que o Brasil
importava dos Estados Unidos, além do país passar a ser visto como um grande
concorrente em outros mercados. O fim da Segunda Guerra, por seu turno,
representou o fim da Era Vargas, afinal os militares brasileiros, que lutaram
na guerra, voltaram imbuídos do projeto norte-americano de democracia – o qual colidia
frontalmente com o a ditadura do Estado Novo. Do ponto de vista nacional, havia
os movimentos tenentistas em geral, bem como particularmente o integralismo de
Plínio Salgado e o comunismo de Luis Carlos Prestes. Acrescente-se, a isso, a
imprensa que não lhe dava sossego mais o suposto ataque ao jornalista Carlos Lacerda,
em tese praticado pelo chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório
Fortunato, o “Anjo Negro” do Getúlio, que teve como vítima fatal o major da
aeronáutica Rubens Florentino Vaz. Tal atentado foi o estopim, haja vista que nenhuma
crise política resiste a um cadáver, ainda mais quando este é fardado, jovem, branco
(morto por um negro), pai de quatro filhos e opositor à figura do presidente. Eis,
pois, em linhas gerais, o cenário anômico no qual Vargas se encontrava e no
qual ele se suicidou.
Se, por um lado, têm-se, defronte de
nós, indícios que apontam para um suicídio altruísta facultativo, por outro
lado se têm, do mesmo modo, indícios que sugerem um suicídio anômico. Como não
podemos descartar nenhuma das duas hipóteses, uma vez que o suicídio altruísta não
repele necessariamente o motor do suicídio anômico, pelo contrário, o concurso
das circunstâncias (leia-se desordem coletiva) só tende a aumentar, no caso em
questão, o sentimento da vítima para com o seu dever pátrio, sustentamos a tese
de que o suicídio de Vargas não se classifica como sendo apenas de um tipo
elementar, mas de caráter misto; logo, estamos diante de um suicídio
anômico-altruísta.
Por fim, vale dizer que se é verdade
que Getúlio Vargas entrou para a História, não é menos verdade que o seu
suicídio entrou para Sociologia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Assim que eu ler o seu comentário, responderei-o imediatamente. Grato pelo carinho.