sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A CIÊNCIA EM KUHN, POPPER E BOURDIEU: ESBOÇOS DE UMA LEITURA DIALÉTICA


Tal como pressupõe o materialismo histórico e a dialética hegeliana, a epistemologia em geral, assim como tudo o que é social e, portanto, histórico, também se move por contradições.
No que compete à discussão acerca da cientificidade no âmbito das ciências sociais em particular, vê-se que essa nunca se assentou sobre um paradigma específico (tomemos o exemplo da sociologia, na qual se tem desde concepções essencialmente empiristas e hermenêuticas, como se tem também concepções dialéticas).
As referidas contradições, por seu turno, organizam-se, de certa forma, por pares de oposição, o que é próprio do homem, haja vista que, conforme a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, não apenas o pensamento humano se organiza e se estrutura mediante a construção de pares dicotômicos, como principalmente a classificação do mundo só se tornou possível a partir da elaboração de pares conceituais opostos.
A epistemologia das ciências sociais, por conseguinte, não haveria de ficar excluída de tal princípio estrutural, afinal, o que é a discussão acerca do subjetivismo versus objetivismo, do racionalismo versus relativismo, da filosofia versus ciência senão a cristalização desse modo universal de se pensar o mundo?
Dito isto, o presente ensaio buscará defrontar e contrastar as concepções científicas de Thomas Kuhn, Karl Popper e Pierre Bourdieu à luz de uma leitura dialética, procurando evidenciar as contradições e superações esboçadas nas obras dos referidos autores.
Thomas Kuhn, como se sabe, não foi um cientista social. No entanto a sua obra, A estrutura das revoluções científicas, impactou não apenas os estudos da física, bem como também os das ciências humanas – repercutindo, inclusive, na sociologia do conhecimento.
Em linhas gerais, Kuhn traça uma linha evolutiva que passa pelo que ele chama de pré-ciência (que seria uma ciência sem paradigmas dominantes); depois, um período de ciência normal (no qual se tem apenas um paradigma dominante, pelo menos até que este consiga fornecer problemas e resoluções modelares à comunidade científica); posteriormente, prevê-se uma crise (na qual um paradigma rival entra em confronto com o dominante) que leva a uma revolução científica (momento em que há um episódio de desenvolvimento não cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior) e, novamente, mais um novo período de ciência normal (portanto, “uno-paradigmático”), e assim sucessivamente, uma vez que a ciência, conforme tal visão, não se desenvolve por acumulação, mas por rupturas de paradigmas.
Até aqui tudo bem, tendo em vista que não se percebe, nitidamente, um viés relativista, cujo mesmo é acusado de se posicionar. Contudo, é válido perguntar: o que é um paradigma?
No limite de sua definição, paradigma nada mais é que uma concepção de mundo, que dita as regras, os métodos, as teorias e até mesmo os objetos que se pode estudar em um determinado período, o qual, por vez, é compartilhado por toda uma comunidade científica.
Ora, diante de tal definição, é plausível questionar: o conhecimento seria isento de lógica? E a comunidade científica, seria toda ela um corpo homogêneo, assepsiada de contradições e concorrências entre os pares e funcionaria sem o laissez-faire do acúmulo de capital científico? Tais questões, por conseguinte, leva-nos ao Popper e ao Bourdieu, respectivamente.
Superando de certa forma a teoria do Kuhn, Karl Popper, em Lógica das ciências sociais, vem negar a tese de que não se pode justificar o conhecimento científico de forma lógica. Para ele os valores científicos diferem dos valores extracientíficos, e, portanto, a ciência funciona dentro de uma lógica que lhe é própria, e não simplesmente por aquilo que a comunidade científica acredita.
Assim como Kuhn, Popper também refuta a concepção positivista de que se pode observar um fenômeno despido do casaco das prenoções - como propõe o projeto utópico da sociologia durkheimiana. Contudo, Popper não abre mão da objetividade, simplesmente não a procura na figura do pesquisador, e sim na própria forma como a ciência está organizada. Assim, de certa forma, a objetividade científica também está relacionada com a prática social do grupo, afinal a mesma se encontra baseada unicamente sobre uma tradição crítica, mediante a qual é possível criticar um dogma dominante. Desse modo, é possível afirmar que a objetividade não reside na isenção de valores, mas ela é, antes de tudo, um valor científico.
Portanto, a função mais importante da pura lógica dedutiva é a de um sistema de crítica, e a crítica, no que lhe cabe, permite separar os valores e desvalores científicos dos valores e desvalores não científicos, o que nos permite fazer aproximações da verdade. Logo, quanto mais uma teoria resistir aos testes, maior a sua explicação e a maior a sua verdade explicativa. Vale lembrar, no entanto, que dentro dessa perspectiva todas as teorias são falseáveis, uma vez que todas estão sujeitas ao ataque da crítica.
Vê-se, assim, que Popper pode ser lido como uma antítese à tese do Kuhn, uma vez que aquele representa a radicalização da negação deste. Radicalizar, dentro da concepção na qual este ensaio está pautado, não significa nada a mais do que arrancar as coisas pela raiz, e isso, em certa medida, foi feito. Porém, como disse Karl Marx, a raiz do homem é o próprio homem, portanto, segundo a nossa leitura, é Bourdieu quem consegue enraizar o homem à sua prática científica, superando, dialeticamente, a polêmica entre subjetivismo e objetivismo.
A grande novidade que Pierre Bourdieu insere na discussão aqui travada é, sem sombra de dúvida, a noção do conflito, do antagonismo, isto é, do campo científico como um campo permeado de relações de poder, no qual se trava uma luta entre os pares-concorrentes.
Sob esse prisma, não é a objetividade versus a subjetividade que estão se digladiando. O que existe, segundo Bourdieu, é uma relação dialética entre o ator (leia-se cientista) e a estrutura (o campo científico), que se dá mediante uma luta em busca tanto de acúmulo de capital científico, quanto do monopólio da autoridade científica.
De início, é apontado que, tal como o mercado, essa concorrência é desigual desde a saída, tendo em vista que a posição científica e a posição política são indissociáveis, ou seja, o científico não se encontra apartado do extracientífico, como pensa Popper, pois o que é científico é o que se está em jogo, e o que se está em jogo é poder.
Do ponto de vista do monopólio da autoridade, Bourdieu destaca que o domínio do campo passa pelo domínio da técnica, e quem domina o campo estabelece, praticamente, as regras. Percebe-se, mais uma vez, que a capacidade técnica não é autônoma em si, afinal a mesma é definida com base na posição que o agente ocupa no campo, ou, em outras palavras, é definida a partir de relações de poder. Assim, o julgamento da capacidade técnica de um pesquisador passa, necessariamente, pela posição hierárquica que o mesmo ocupa no campo. Logo, não basta possuir capacidade técnica, é preciso assim ser reconhecido.
De certo modo, tal como em Kuhn, é a comunidade científica quem decide o que é ciência, mas essa decisão, por outro lado, não é arbitrária e passa pelo jogo entre o científico e o político, pelo simples fato de todas as práticas científicas serem perpassadas por relações de poder.
Por fim, vale destacar que o pesquisador calcula estratégias que não são propriamente científicas, o que reforça, novamente, a leitura do Bourdieu quanto a indissociabilidade entre o científico e o extracientífico, haja vista que não há escolha científica, pois tais estratégias nada mais são que uma política de investimento que visa nada além que a maximização do lucro propriamente científico, isto é, o acúmulo de capital simbólico, e uma vez se obtendo isso, há o reconhecimento dos pares-concorrentes, portanto, autoridade e legitimidade científica.


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