Tal como pressupõe o
materialismo histórico e a dialética hegeliana, a epistemologia em geral, assim
como tudo o que é social e, portanto, histórico, também se move por
contradições.
No que compete à discussão acerca
da cientificidade no âmbito das ciências sociais em particular, vê-se que essa nunca
se assentou sobre um paradigma específico (tomemos o exemplo da sociologia, na
qual se tem desde concepções essencialmente empiristas e hermenêuticas, como se
tem também concepções dialéticas).
As referidas contradições, por
seu turno, organizam-se, de certa forma, por pares de oposição, o que é próprio
do homem, haja vista que, conforme a antropologia estrutural de Claude
Lévi-Strauss, não apenas o pensamento humano se organiza e se estrutura
mediante a construção de pares dicotômicos, como principalmente a classificação
do mundo só se tornou possível a partir da elaboração de pares conceituais
opostos.
A epistemologia das
ciências sociais, por conseguinte, não haveria de ficar excluída de tal
princípio estrutural, afinal, o que é a discussão acerca do subjetivismo versus objetivismo, do racionalismo versus relativismo, da filosofia versus ciência senão a cristalização
desse modo universal de se pensar o mundo?
Dito isto, o presente
ensaio buscará defrontar e contrastar as concepções científicas de Thomas Kuhn,
Karl Popper e Pierre Bourdieu à luz de uma leitura dialética, procurando evidenciar
as contradições e superações esboçadas nas obras dos referidos autores.
Thomas Kuhn, como se sabe, não
foi um cientista social. No entanto a sua obra, A estrutura das revoluções científicas, impactou não apenas os
estudos da física, bem como também os das ciências humanas – repercutindo,
inclusive, na sociologia do conhecimento.
Em linhas gerais, Kuhn traça
uma linha evolutiva que passa pelo que ele chama de pré-ciência (que seria uma
ciência sem paradigmas dominantes); depois, um período de ciência normal (no
qual se tem apenas um paradigma dominante, pelo menos até que este consiga fornecer
problemas e resoluções modelares à comunidade científica); posteriormente, prevê-se
uma crise (na qual um paradigma rival entra em confronto com o dominante) que
leva a uma revolução científica (momento em que há um episódio de
desenvolvimento não cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou
parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior) e,
novamente, mais um novo período de ciência normal (portanto, “uno-paradigmático”),
e assim sucessivamente, uma vez que a ciência, conforme tal visão, não se
desenvolve por acumulação, mas por rupturas de paradigmas.
Até aqui tudo bem, tendo em
vista que não se percebe, nitidamente, um viés relativista, cujo mesmo é
acusado de se posicionar. Contudo, é válido perguntar: o que é um paradigma?
No limite de sua definição,
paradigma nada mais é que uma concepção de mundo, que dita as regras, os
métodos, as teorias e até mesmo os objetos que se pode estudar em um determinado
período, o qual, por vez, é compartilhado por toda uma comunidade científica.
Ora, diante de tal
definição, é plausível questionar: o conhecimento seria isento de lógica? E a
comunidade científica, seria toda ela um corpo homogêneo, assepsiada de
contradições e concorrências entre os pares e funcionaria sem o laissez-faire do acúmulo de capital científico?
Tais questões, por conseguinte, leva-nos ao Popper e ao Bourdieu,
respectivamente.
Superando de certa forma a
teoria do Kuhn, Karl Popper, em Lógica
das ciências sociais, vem negar a tese de que não se pode justificar o
conhecimento científico de forma lógica. Para ele os valores científicos
diferem dos valores extracientíficos, e, portanto, a ciência funciona dentro de
uma lógica que lhe é própria, e não simplesmente por aquilo que a comunidade
científica acredita.
Assim como Kuhn, Popper
também refuta a concepção positivista de que se pode observar um fenômeno despido
do casaco das prenoções - como propõe o projeto utópico da sociologia durkheimiana.
Contudo, Popper não abre mão da objetividade, simplesmente não a procura na
figura do pesquisador, e sim na própria forma como a ciência está organizada. Assim,
de certa forma, a objetividade científica também está relacionada com a prática
social do grupo, afinal a mesma se encontra baseada unicamente sobre uma
tradição crítica, mediante a qual é possível criticar um dogma dominante. Desse
modo, é possível afirmar que a objetividade não reside na isenção de valores,
mas ela é, antes de tudo, um valor científico.
Portanto, a função mais
importante da pura lógica dedutiva é a de um sistema de crítica, e a crítica, no
que lhe cabe, permite separar os valores e desvalores científicos dos valores e
desvalores não científicos, o que nos permite fazer aproximações da verdade.
Logo, quanto mais uma teoria resistir aos testes, maior a sua explicação e a
maior a sua verdade explicativa. Vale lembrar, no entanto, que dentro dessa
perspectiva todas as teorias são falseáveis, uma vez que todas estão sujeitas
ao ataque da crítica.
Vê-se, assim, que Popper
pode ser lido como uma antítese à tese do Kuhn, uma vez que aquele representa a
radicalização da negação deste. Radicalizar, dentro da concepção na qual este
ensaio está pautado, não significa nada a mais do que arrancar as coisas pela
raiz, e isso, em certa medida, foi feito. Porém, como disse Karl Marx, a raiz
do homem é o próprio homem, portanto, segundo a nossa leitura, é Bourdieu quem
consegue enraizar o homem à sua prática científica, superando, dialeticamente,
a polêmica entre subjetivismo e objetivismo.
A grande novidade que
Pierre Bourdieu insere na discussão aqui travada é, sem sombra de dúvida, a
noção do conflito, do antagonismo, isto é, do campo científico como um campo permeado
de relações de poder, no qual se trava uma luta entre os pares-concorrentes.
Sob esse prisma, não é a
objetividade versus a subjetividade
que estão se digladiando. O que existe, segundo Bourdieu, é uma relação dialética
entre o ator (leia-se cientista) e a estrutura (o campo científico), que se dá
mediante uma luta em busca tanto de acúmulo de capital científico, quanto do
monopólio da autoridade científica.
De início, é apontado que,
tal como o mercado, essa concorrência é desigual desde a saída, tendo em vista
que a posição científica e a posição política são indissociáveis, ou seja, o
científico não se encontra apartado do extracientífico, como pensa Popper, pois
o que é científico é o que se está em jogo, e o que se está em jogo é poder.
Do ponto de vista do
monopólio da autoridade, Bourdieu destaca que o domínio do campo passa pelo
domínio da técnica, e quem domina o campo estabelece, praticamente, as regras. Percebe-se,
mais uma vez, que a capacidade técnica não é autônoma em si, afinal a mesma é
definida com base na posição que o agente ocupa no campo, ou, em outras
palavras, é definida a partir de relações de poder. Assim, o julgamento da
capacidade técnica de um pesquisador passa, necessariamente, pela posição
hierárquica que o mesmo ocupa no campo. Logo, não basta possuir capacidade técnica,
é preciso assim ser reconhecido.
De certo modo, tal como em
Kuhn, é a comunidade científica quem decide o que é ciência, mas essa decisão,
por outro lado, não é arbitrária e passa pelo jogo entre o científico e o
político, pelo simples fato de todas as práticas científicas serem perpassadas
por relações de poder.
Por fim, vale destacar que
o pesquisador calcula estratégias que não são propriamente científicas, o que
reforça, novamente, a leitura do Bourdieu quanto a indissociabilidade entre o
científico e o extracientífico, haja vista que não há escolha científica, pois
tais estratégias nada mais são que uma política de investimento que visa nada
além que a maximização do lucro propriamente científico, isto é, o acúmulo de
capital simbólico, e uma vez se obtendo isso, há o reconhecimento dos
pares-concorrentes, portanto, autoridade e legitimidade científica.
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