“Cumpri contra o destino o meu
dever.
Inutilmente? Não, porque cumpri.”
(Fernando Pessoa)
Será um belo fim se eu morrer tendo cumprido o meu dever[1], eis o que diz Antígona, em linhas gerais,
à sua irmã Ismene. E é assim que introduzimos esta dissertação, apresentando,
desde o início, o fim escolhido por tal filha de Édipo, pois, se é verdade que o salário do pecado é a morte[2],
a morte, à Antígona, apresenta-se desde o princípio como o pagamento de sua
transgressão.
A transgressão cometida pela princesa
tebana será, portanto, o elemento-chave deste texto, pois é a partir dela que
proporemos uma leitura dialética em Antígona
– e tal leitura, por sinal, será nosso objetivo a ser alcançado.
Recorreremos, portanto, à seção VI da
Fenomenologia do Espírito, do
filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, bem como a alguns parágrafos
introdutórios desta mesma obra, a fim de contextualizar e evidenciar esse
caráter dialético que buscamos empreender. Dito isto, dedicamo-nos, agora, a apresentar,
brevemente, esta peça clássica da dramaturgia grega, para logo em seguida
analisá-la sob o ponto de vista já mencionado.
Filha do relacionamento incestuoso
entre o rei Édipo e sua própria mãe Jocasta, descendente de Lábdaco, fundador
de Tebas, Antígona é, antes de tudo, uma personagem que escolhera a morte.
Irmã de Ismene e dos
fratricidas/suicidas Etéocles e Polinice, Antígona, de acordo com o Corifeu, é uma
jovem de caráter indomável, que não se deixa dominar pela desgraça e se mostra
o tempo todo inflexível, tal qual seu pai. Para sua irmã, no entanto, a jovem
pode ser vista, até certo ponto, como uma imprudente e até mesmo como uma louca,
pois, segundo Ismene, além de não ser prudente tentar o que é irrealizável, é
uma loucura tentar aquilo que ultrapassa as forças humanas[3].
Condenada à morte por ter infringido
o édito de seu tio Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso, esta jovem não se
intimida nem se sente coagida nem mesmo na presença de quem a sentenciou a tal
condenação.
Diante do governador tebano Creonte,
a filha de Édipo reafirma sua transgressão e confessa ter sepultado seu irmão
Polinice, o qual, por ordem da referida autoridade, estava terminantemente proibido
de receber honrarias fúnebres – haja vista que este fora acusado de retornar do
exílio com o propósito de queimar todo o seu país natal, destruir os deuses de
sua família e derramar o sangue dos seus.
Desse modo, venerando as leis divinas,
Antígona acaba por desprezar a legitimidade das leis da cidade, sob o argumento
de que as primeiras jamais foram escritas e mesmo assim são irrevogáveis, isto
é, não existem a partir de ontem ou de hoje, mas são eternas, enquanto as leis
citadinas são mutáveis e, particularmente nesse caso, fruto da vontade de um
tirano[4].
É válido mencionar que Antígona era
noiva de Hemon, filho de Creonte com Eurídice, porém tal jovem desposa-se mesmo
é com o Aqueronte, um dos rios do Inferno, tendo como leito nupcial o túmulo no
qual a mesma é aprisionada até o dia em que se enforca com os cadarços
amarrados em sua cintura.
Como estamos diante de uma tragédia, Sófocles,
autor desta peça, leva a morte não apenas à Antígona, Etéocles e Polinice, mas
a estende às figuras de Hemon, que morre ao lado de sua noiva, e Eurídice, que
se fere brutalmente logo após saber do suicídio cometido pelo seu filho.
Se é que isto consola os modernos,
pode-se inferir que talvez Antígona e Hemon tenham tido suas bodas no Hades, mas
o “felizes para sempre”, no entanto, não contempla este infeliz casal.
Por fim, para finalizar esta
narrativa, ouso afirmar que Antígona foi, sobretudo, aquela que morreu antes de
Tebas.
A partir do que foi exposto,
percebe-se que é o ato executado por Antígona que a torna culpada. Culpada,
portanto, porque agiu – pois só o não agir é inocente[5].
No entanto, ela conhecia antecipadamente a lei e sabia a potência que lhe
opunha, portanto sua culpa é mais pura[6],
pois as tomou por violência e injustiça, e quando cometeu o delito, sabia que
assim o fazia.
Desse ponto de vista, nossa heroína
não agiu com má-fé, no sentido sartriano do termo; pelo contrário, ao assumir
sua responsabilidade enquanto autora do crime, mostra-se livre, dado que deixa
transparecer a consciência da necessidade do seu ato.
Do ponto de vista hegeliano, o ato já
é o Si efetivo[7],
ou seja, o agir é o passar do pensamento à efetividade[8].
Porém, o ato perturba a calma organização do mundo ético. Assim, mediante o
ato, o que antes se apresentava no mundo ético como ordem e harmonia entre duas
essências, às quais se confirmavam e se completavam mutuamente, agora se mostra
como uma transição de opostos, cuja anulação de si mesmo e do outro se
sobrepõe.
De acordo com Hegel, o movimento do
mundo ético tem por fundamento e por atividade, respectivamente, o reino da
eticidade e a consciência-de-si. Esta, como consciência ética, orienta-se para
o dever. Eis, pois, o que faz Antígona ao desprezar a Lei humana e legitimar
sua ação na Lei divina, uma vez que esta última assegura-lhe a legalidade do
seu ato, qual seja, o dever supremo de enterrar seu irmão Polinice. Mas não
apenas isto, ou melhor, no caso citado, a consciência-de-si não substitui
simplesmente a Lei humana pela divina por um capricho de sua vontade[9],
pois um asseverar seco vale tanto como qualquer outro[10],
mas principalmente porque, como está orientada para a essencialidade ética, não
existe nenhum arbítrio para essa consciência, bem como, também, nenhum conflito
e nenhuma indecisão, muito pelo contrário, “a essencialidade ética é para essa
consciência algo imediato, inabalável e imune à contradição” (HEGEL, op. cit., p. 320, § 465).
Logo, vê-se que a consciência ética
sabe o que tem de fazer e decidiu pertencer a uma das duas leis: seja à humana,
seja à divina. Essa imediatez da consciência é, conforme Hegel, um Ser-em-si, e
tem, por assim dizer, significação natural. Ora, é a natureza de tal significação
que atribui um sexo a uma lei e outro a outra. Portanto, temos aqui a clara
contraposição entre Antígona e o Creonte, a Lei Divina e a Lei humana.
Antígona, assim, representa a
dimensão da Lei divina, a noite, a família, a morte, os deuses inferiores, o
feminino, o particular, o culto aos mortos. Creonte, inversamente, representa a
Lei humana, o dia, o Estado, a vida, os deuses superiores, o masculino, o
universal, a preocupação com os vivos. Enquanto a Lei humana é a lei do dia e
do homem, visível e pública, voltada para regulamentar as condutas humanas, a
Lei divina é concebida como a lei da mulher, habitando o lar e a esfera do
sagrado. Logo, temos o conflito, que, em Sófocles, é representado pela oposição
entre sobrinha e tio, que acaba em tragédia; em Hegel, porém, vemos a noção de
uma consciência que se desenvolve mediante o conflito. Eis, pois, a dialética:
o espírito de contradição organizado.
Segundo a nossa avaliação, a lei está
para Antígona e Creonte assim como o conhecimento está para a verdade.
Lembremos o que disse Hegel a respeito do conhecimento: ao criticar o modo como
a Filosofia precedente concebe o conhecer – ora como um instrumento com que se
domina o absoluto, ora como um meio através do qual o absoluto é contemplado[11],
portanto uma representação oca do saber[12]
–, Hegel introduz, pela primeira vez, a ideia de conhecimento como algo não
separado da verdade. Assim, conforme o pensamento hegeliano, a verdade não se
encontra separada do conhecer, pelo contrário, ela está, desde sempre, presente
nele. Assim vemos a lei no filho de Meneceu e na filha de Édipo, não como algo
estranho ao Si de ambos, mas como expressão de suas vidas. No caso de Creonte
em particular, negar a Lei humana é negar a si mesmo, pois, assim como para o
rei Luís XIV o Estado era Si próprio[13],
a Lei humana, para Creonte, é o seu Self.
Vale destacar que a consciência ética
vê o direito somente do seu lado[14],
e vê, no outro, o abuso. Logo, “a consciência que pertence à lei divina
enxerga, do outro lado, a violência
humana contingente. Mas a consciência, que pertence à lei humana, vê no lado
oposto a obstinação e a desobediência do ser-para-si interior” (HEGEL, op. cit., p. 321, § 466). Assim, no que diz respeito à figura de Creonte,
convém sublinhar que este não é propriamente um déspota, não é alguém que está
em erro. Seu papel, como governante, é também o de legislar, portanto sustenta
que a lei do Estado, a autoridade do Governo, deve ser respeitada e cuja
transgressão deve ser punida, pois se configura como um crime. Tampouco
Antígona é uma mera transgressora sem causa, tendo em vista que enterrar seu
irmão, mesmo sendo um crime, é um ato de honra em memória de Polinice, afinal,
como indaga Antígona à Ismene, “quem é ele para separar-me dos meus?” (SÓFOCLES,
op. cit., p. 10, V. 48).
No que diz respeito à culpa, vale
lembrar que é pelo ato que a consciência-de-si torna-se culpa. Desse modo, a
culpa recebe também a significação de delito, pois a consciência-de-si
consagrou-se apenas a uma lei, e, ao renegar a outra, a viola por meio do seu
ato. Nas palavras do Hegel, essa culpa consiste em “escolher só um dos lados da
essência, e em comportar-se negativamente para com o outro; quer dizer, em
violá-lo” (HEGEL, op. cit., p. 324, § 468). Ora, o que fizeram Antígona
e Creonte, com relação ao decreto deste e o ato daquela, senão em comportar-se
negativamente com relação ao outro? O que fizeram ambos senão, ao seu tempo,
cada qual a seu modo, em escolher apenas um lado da essência e violar o lado
oposto? Têm-se assim, no tribunal de Sófocles e Hegel, dois réus confessos[15]:
mea culpa, mea maxima culpa[16].
Por fim, no que tange à discussão a
respeito da essência, vale mencionar que esta é a unidade das duas leis, mas o
ato, no entanto, só realizou uma, contrapondo-se, portanto, à outra. Contudo, como
na dialética do senhor e do escravo[17],
por ambas as leis estarem unidas na essência, o cumprimento de uma evoca a
outra, mas evoca como essência violada.
Finalizando, desde já, esta
dissertação, acreditamos termos alcançado – principalmente a partir da leitura
do parágrafo anterior – o nosso objetivo proposto, que é, como se sabe, buscar ler
Antígona pelo viés da dialética
hegeliana, utilizando-se, para tanto, a transgressão como meio de evidenciar o
choque entre o rei Creonte e sua sobrinha.
Antígona, como sabemos, está no
Hades, em companhia dos mortos que tanto venerava. Por isso é Creonte, e não a
filha de Édipo, que, após arrepender-se de ter infringido a Lei dos deuses,
concluirá o presente trabalho: “suspeito que observar as leis estabelecidas é o
melhor a fazer no percurso desta vida” (SÓFOCLES, op. cit., p. 82, V. 1114-1115). Eis a síntese.
Referências:
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito.
Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2011.
SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donald Schüler.
Porto Alegre: L&PM, 2007.
[1]
Segundo a tradução de Donald Schüler, nesta passagem, Antígona diz literalmente
o seguinte: “Se ao fazê-lo tiver que morrer, que bela morte será!” (SÓFOCLES,
2007, p. 11, V. 72).
[2]
Epístola de Paulo aos Romanos, cap. 6, vers. 23.
[3]
“[...] Obedecerei a quem está no poder; fazer mais que isso não tem nenhum
sentido” (SÓFOCLES, op. cit., p. 11, V. 67-68).
[4]
Convém sublinhar que a palavra tirano
(tyrranos) possui uma dupla
significação, podendo designar tanto a pessoa de um déspota, quanto um
governante que conquista o poder pelo próprio mérito, nesse caso, rompendo-se
com a antiga linhagem dos Labdácidas, uma vez que não apenas Édipo está morto,
bem como também seus dois filhos: Etéocles e Polinice.
[5]
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia
do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011. p. 323, § 468.
[6]
Idem, ibidem, p. 325, § 470.
[7] Idem, ibidem, p. 320, § 464.
[8] Idem, ibidem, p. 322, § 467.
[9]
Afinal a consciência sabe que “a diferença entre apoiar-se em uma autoridade
alheia, e firmar-se na própria convicção – no sistema do Visar e do preconceito
– está apenas na vaidade que reside nessa segunda maneira” (Idem, ibidem, p. 75, § 78)
[10]
Idem, ibidem, p. 74, § 76.
[11]
Idem, ibidem, p. 71, § 73.
[12]
Idem, ibidem, p. 73, § 76.
[13]
“L’État c’est moi.” (O Estado sou
Eu).
[14]
A respeito disto, vale mencionar o que disse Hemon ao seu pai, ao pedir que
este reconsidere sua sanção para com Antígona: “Não carregues em ti só uma
morada da verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber
exclusivo, possuir língua e mente estranha aos demais, nesse, se o abres, verás
o vazio” (SÓFOCLES, op. cit., p. 53, V. 705-709).
[15]
Creonte, após dar-se conta da morte de Hemon, reconhece a sua culpa: “[...]
morreste, partiste por desacertos meus, não teus” (SÓFOCLES, op. cit., p. 92, V. 1268-1269). O mesmo se dá com Antígona, quando esta confessa
seu crime: “Admito, não nego nada” (Idem,
ibidem, p. 35, V. 443).
[16]
Trecho da tradicional prece católica Confiteor
(Eu confesso).
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