sexta-feira, 15 de agosto de 2014

ANTÍGONA E A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: TRANSGRESSÃO E DIALÉTICA


Cumpri contra o destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque cumpri.”
(Fernando Pessoa)


Será um belo fim se eu morrer tendo cumprido o meu dever[1], eis o que diz Antígona, em linhas gerais, à sua irmã Ismene. E é assim que introduzimos esta dissertação, apresentando, desde o início, o fim escolhido por tal filha de Édipo, pois, se é verdade que o salário do pecado é a morte[2], a morte, à Antígona, apresenta-se desde o princípio como o pagamento de sua transgressão.
A transgressão cometida pela princesa tebana será, portanto, o elemento-chave deste texto, pois é a partir dela que proporemos uma leitura dialética em Antígona – e tal leitura, por sinal, será nosso objetivo a ser alcançado.
Recorreremos, portanto, à seção VI da Fenomenologia do Espírito, do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, bem como a alguns parágrafos introdutórios desta mesma obra, a fim de contextualizar e evidenciar esse caráter dialético que buscamos empreender. Dito isto, dedicamo-nos, agora, a apresentar, brevemente, esta peça clássica da dramaturgia grega, para logo em seguida analisá-la sob o ponto de vista já mencionado.
Filha do relacionamento incestuoso entre o rei Édipo e sua própria mãe Jocasta, descendente de Lábdaco, fundador de Tebas, Antígona é, antes de tudo, uma personagem que escolhera a morte.
Irmã de Ismene e dos fratricidas/suicidas Etéocles e Polinice, Antígona, de acordo com o Corifeu, é uma jovem de caráter indomável, que não se deixa dominar pela desgraça e se mostra o tempo todo inflexível, tal qual seu pai. Para sua irmã, no entanto, a jovem pode ser vista, até certo ponto, como uma imprudente e até mesmo como uma louca, pois, segundo Ismene, além de não ser prudente tentar o que é irrealizável, é uma loucura tentar aquilo que ultrapassa as forças humanas[3].
Condenada à morte por ter infringido o édito de seu tio Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso, esta jovem não se intimida nem se sente coagida nem mesmo na presença de quem a sentenciou a tal condenação.
Diante do governador tebano Creonte, a filha de Édipo reafirma sua transgressão e confessa ter sepultado seu irmão Polinice, o qual, por ordem da referida autoridade, estava terminantemente proibido de receber honrarias fúnebres – haja vista que este fora acusado de retornar do exílio com o propósito de queimar todo o seu país natal, destruir os deuses de sua família e derramar o sangue dos seus.
Desse modo, venerando as leis divinas, Antígona acaba por desprezar a legitimidade das leis da cidade, sob o argumento de que as primeiras jamais foram escritas e mesmo assim são irrevogáveis, isto é, não existem a partir de ontem ou de hoje, mas são eternas, enquanto as leis citadinas são mutáveis e, particularmente nesse caso, fruto da vontade de um tirano[4].
É válido mencionar que Antígona era noiva de Hemon, filho de Creonte com Eurídice, porém tal jovem desposa-se mesmo é com o Aqueronte, um dos rios do Inferno, tendo como leito nupcial o túmulo no qual a mesma é aprisionada até o dia em que se enforca com os cadarços amarrados em sua cintura.
Como estamos diante de uma tragédia, Sófocles, autor desta peça, leva a morte não apenas à Antígona, Etéocles e Polinice, mas a estende às figuras de Hemon, que morre ao lado de sua noiva, e Eurídice, que se fere brutalmente logo após saber do suicídio cometido pelo seu filho.
Se é que isto consola os modernos, pode-se inferir que talvez Antígona e Hemon tenham tido suas bodas no Hades, mas o “felizes para sempre”, no entanto, não contempla este infeliz casal.
Por fim, para finalizar esta narrativa, ouso afirmar que Antígona foi, sobretudo, aquela que morreu antes de Tebas.
A partir do que foi exposto, percebe-se que é o ato executado por Antígona que a torna culpada. Culpada, portanto, porque agiu – pois só o não agir é inocente[5]. No entanto, ela conhecia antecipadamente a lei e sabia a potência que lhe opunha, portanto sua culpa é mais pura[6], pois as tomou por violência e injustiça, e quando cometeu o delito, sabia que assim o fazia.
Desse ponto de vista, nossa heroína não agiu com má-fé, no sentido sartriano do termo; pelo contrário, ao assumir sua responsabilidade enquanto autora do crime, mostra-se livre, dado que deixa transparecer a consciência da necessidade do seu ato.
Do ponto de vista hegeliano, o ato já é o Si efetivo[7], ou seja, o agir é o passar do pensamento à efetividade[8]. Porém, o ato perturba a calma organização do mundo ético. Assim, mediante o ato, o que antes se apresentava no mundo ético como ordem e harmonia entre duas essências, às quais se confirmavam e se completavam mutuamente, agora se mostra como uma transição de opostos, cuja anulação de si mesmo e do outro se sobrepõe.
De acordo com Hegel, o movimento do mundo ético tem por fundamento e por atividade, respectivamente, o reino da eticidade e a consciência-de-si. Esta, como consciência ética, orienta-se para o dever. Eis, pois, o que faz Antígona ao desprezar a Lei humana e legitimar sua ação na Lei divina, uma vez que esta última assegura-lhe a legalidade do seu ato, qual seja, o dever supremo de enterrar seu irmão Polinice. Mas não apenas isto, ou melhor, no caso citado, a consciência-de-si não substitui simplesmente a Lei humana pela divina por um capricho de sua vontade[9], pois um asseverar seco vale tanto como qualquer outro[10], mas principalmente porque, como está orientada para a essencialidade ética, não existe nenhum arbítrio para essa consciência, bem como, também, nenhum conflito e nenhuma indecisão, muito pelo contrário, “a essencialidade ética é para essa consciência algo imediato, inabalável e imune à contradição” (HEGEL, op. cit., p. 320, § 465).
Logo, vê-se que a consciência ética sabe o que tem de fazer e decidiu pertencer a uma das duas leis: seja à humana, seja à divina. Essa imediatez da consciência é, conforme Hegel, um Ser-em-si, e tem, por assim dizer, significação natural. Ora, é a natureza de tal significação que atribui um sexo a uma lei e outro a outra. Portanto, temos aqui a clara contraposição entre Antígona e o Creonte, a Lei Divina e a Lei humana.
Antígona, assim, representa a dimensão da Lei divina, a noite, a família, a morte, os deuses inferiores, o feminino, o particular, o culto aos mortos. Creonte, inversamente, representa a Lei humana, o dia, o Estado, a vida, os deuses superiores, o masculino, o universal, a preocupação com os vivos. Enquanto a Lei humana é a lei do dia e do homem, visível e pública, voltada para regulamentar as condutas humanas, a Lei divina é concebida como a lei da mulher, habitando o lar e a esfera do sagrado. Logo, temos o conflito, que, em Sófocles, é representado pela oposição entre sobrinha e tio, que acaba em tragédia; em Hegel, porém, vemos a noção de uma consciência que se desenvolve mediante o conflito. Eis, pois, a dialética: o espírito de contradição organizado.
Segundo a nossa avaliação, a lei está para Antígona e Creonte assim como o conhecimento está para a verdade. Lembremos o que disse Hegel a respeito do conhecimento: ao criticar o modo como a Filosofia precedente concebe o conhecer – ora como um instrumento com que se domina o absoluto, ora como um meio através do qual o absoluto é contemplado[11], portanto uma representação oca do saber[12] –, Hegel introduz, pela primeira vez, a ideia de conhecimento como algo não separado da verdade. Assim, conforme o pensamento hegeliano, a verdade não se encontra separada do conhecer, pelo contrário, ela está, desde sempre, presente nele. Assim vemos a lei no filho de Meneceu e na filha de Édipo, não como algo estranho ao Si de ambos, mas como expressão de suas vidas. No caso de Creonte em particular, negar a Lei humana é negar a si mesmo, pois, assim como para o rei Luís XIV o Estado era Si próprio[13], a Lei humana, para Creonte, é o seu Self.
Vale destacar que a consciência ética vê o direito somente do seu lado[14], e vê, no outro, o abuso. Logo, “a consciência que pertence à lei divina enxerga, do outro lado, a violência humana contingente. Mas a consciência, que pertence à lei humana, vê no lado oposto a obstinação e a desobediência do ser-para-si interior” (HEGEL, op. cit., p. 321, § 466). Assim, no que diz respeito à figura de Creonte, convém sublinhar que este não é propriamente um déspota, não é alguém que está em erro. Seu papel, como governante, é também o de legislar, portanto sustenta que a lei do Estado, a autoridade do Governo, deve ser respeitada e cuja transgressão deve ser punida, pois se configura como um crime. Tampouco Antígona é uma mera transgressora sem causa, tendo em vista que enterrar seu irmão, mesmo sendo um crime, é um ato de honra em memória de Polinice, afinal, como indaga Antígona à Ismene, “quem é ele para separar-me dos meus?” (SÓFOCLES, op. cit., p. 10, V. 48).
No que diz respeito à culpa, vale lembrar que é pelo ato que a consciência-de-si torna-se culpa. Desse modo, a culpa recebe também a significação de delito, pois a consciência-de-si consagrou-se apenas a uma lei, e, ao renegar a outra, a viola por meio do seu ato. Nas palavras do Hegel, essa culpa consiste em “escolher só um dos lados da essência, e em comportar-se negativamente para com o outro; quer dizer, em violá-lo” (HEGEL, op. cit., p. 324, § 468). Ora, o que fizeram Antígona e Creonte, com relação ao decreto deste e o ato daquela, senão em comportar-se negativamente com relação ao outro? O que fizeram ambos senão, ao seu tempo, cada qual a seu modo, em escolher apenas um lado da essência e violar o lado oposto? Têm-se assim, no tribunal de Sófocles e Hegel, dois réus confessos[15]: mea culpa, mea maxima culpa[16].
Por fim, no que tange à discussão a respeito da essência, vale mencionar que esta é a unidade das duas leis, mas o ato, no entanto, só realizou uma, contrapondo-se, portanto, à outra. Contudo, como na dialética do senhor e do escravo[17], por ambas as leis estarem unidas na essência, o cumprimento de uma evoca a outra, mas evoca como essência violada.
Finalizando, desde já, esta dissertação, acreditamos termos alcançado – principalmente a partir da leitura do parágrafo anterior – o nosso objetivo proposto, que é, como se sabe, buscar ler Antígona pelo viés da dialética hegeliana, utilizando-se, para tanto, a transgressão como meio de evidenciar o choque entre o rei Creonte e sua sobrinha.   
Antígona, como sabemos, está no Hades, em companhia dos mortos que tanto venerava. Por isso é Creonte, e não a filha de Édipo, que, após arrepender-se de ter infringido a Lei dos deuses, concluirá o presente trabalho: “suspeito que observar as leis estabelecidas é o melhor a fazer no percurso desta vida” (SÓFOCLES, op. cit., p. 82, V. 1114-1115). Eis a síntese.


Referências:
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011.

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donald Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.






[1] Segundo a tradução de Donald Schüler, nesta passagem, Antígona diz literalmente o seguinte: “Se ao fazê-lo tiver que morrer, que bela morte será!” (SÓFOCLES, 2007, p. 11, V. 72).
[2] Epístola de Paulo aos Romanos, cap. 6, vers. 23.
[3] “[...] Obedecerei a quem está no poder; fazer mais que isso não tem nenhum sentido” (SÓFOCLES, op. cit., p. 11, V. 67-68).
[4] Convém sublinhar que a palavra tirano (tyrranos) possui uma dupla significação, podendo designar tanto a pessoa de um déspota, quanto um governante que conquista o poder pelo próprio mérito, nesse caso, rompendo-se com a antiga linhagem dos Labdácidas, uma vez que não apenas Édipo está morto, bem como também seus dois filhos: Etéocles e Polinice.
[5] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011. p. 323, § 468.
[6] Idem, ibidem, p. 325, § 470.
[7] Idem, ibidem, p. 320, § 464.
[8] Idem, ibidem, p. 322, § 467.
[9] Afinal a consciência sabe que “a diferença entre apoiar-se em uma autoridade alheia, e firmar-se na própria convicção – no sistema do Visar e do preconceito – está apenas na vaidade que reside nessa segunda maneira” (Idem, ibidem, p. 75, § 78)
[10] Idem, ibidem, p. 74, § 76.
[11] Idem, ibidem, p. 71, § 73.
[12] Idem, ibidem, p. 73, § 76.
[13]L’État c’est moi.” (O Estado sou Eu).
[14] A respeito disto, vale mencionar o que disse Hemon ao seu pai, ao pedir que este reconsidere sua sanção para com Antígona: “Não carregues em ti só uma morada da verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente estranha aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio” (SÓFOCLES, op. cit., p. 53, V. 705-709).
[15] Creonte, após dar-se conta da morte de Hemon, reconhece a sua culpa: “[...] morreste, partiste por desacertos meus, não teus” (SÓFOCLES, op. cit., p. 92, V. 1268-1269). O mesmo se dá com Antígona, quando esta confessa seu crime: “Admito, não nego nada” (Idem, ibidem, p. 35, V. 443).
[16] Trecho da tradicional prece católica Confiteor (Eu confesso).
[17] Hegel, op. cit., p. 147-148, § 189-191.



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