sexta-feira, 15 de agosto de 2014

GUIA TEÓRICO DO ALFABETIZADOR: BREVE RESUMO


A alfabetização nunca foi tão discutida, sob o ponto de vista das mais diversificadas áreas do conhecimento humano, como nas últimas décadas. No entanto, apesar do grande número de trabalhos publicados no que diz respeito a este tema, é sempre possível encontrarmos algo novo, como é o caso do livro Guia teórico do alfabetizador, da linguista Miriam Lemle.
 Sem dúvida alguma, tal obra representa uma das maiores contribuições já recebidas, do campo da linguística, pela pedagogia. Isto porque seu conteúdo, por ser altamente didático e utilitário, apresenta-se, como o próprio título sugere, como um guia para alfabetizadores de modo geral, guia este que não se limita apenas à esfera daquilo que podemos chamar de alfabetização tradicional, isto é, da ênfase voltada para o domínio do bê-á-bá, mas, principalmente, por trazer à discussão toda a problemática que há por trás deste tema, como, por exemplo, a questão dos erros cometidos pelas crianças em processo de alfabetização e as riquíssimas considerações acerca das variedades linguísticas.
Logo nos primeiros capítulos, mais precisamente no segundo, Miriam Lemle destaca as capacidades necessárias para alfabetização; segundo ela, o primeiro desafio encontrado pelo alfabetizando, ou a primeira capacidade que ele precisa dominar, é a necessidade de compreender a ligação simbólica entre fonema-grafema, ou seja, entender que as letras representam sons e que quando juntamos esses sons, os transformamos em palavras; a segunda capacidade, por sua vez, diz respeito à faculdade de enxergar aquilo que distingue uma letra da outra, a fim de que a criança perceba que as letras são mais do que meros rabiscos pretos na página em branco; a terceira capacidade, por fim, restringi-se à escuta, isto é, o despertar da consciência fonológica, portanto, saber ouvir e ter consciência dos sons da fala, para distingui-los dos demais sons.
No que toca mais precisamente a questão da apropriação, por parte do alfabetizando, do sistema alfabético, ou, em outras palavras, a tecnologia do ler e escrever, a autora ressalta a importância de algumas etapas pelas quais o mesmo deverá passar, são elas: a teoria do casamento monogâmico entre letra e som, a teoria da poligamia com restrições de posição, a compreensão das partes arbitrárias do sistema alfabético e a necessidade de se ensinar um pouco de morfologia.
A teoria do casamento monogâmico entre letra e som compreende basicamente a relação biunívoca que algumas letras (f / v / b / p / d / t e a vogal a) representam entre si, assim sendo, não importa a ordem ou a posição que as mesmas apareçam em uma determinada palavra, pois sempre representarão seu som específico.
Contrapondo-se a teoria da relação biunívoca, há a teoria da poligamia, que, por sua vez, diz respeito, resumidamente, ao fato de que várias letras podem representar um determinado som e que há vários sons para uma mesma letra, dependendo, assim, da posição que as mesmas ocuparem dentro de uma palavra.
No que tange as partes arbitrárias do sistema, Lemle chama-nos a atenção para a questão de que esta etapa dura por toda a vida, pois está estritamente ligada à questão da ortografia. Isto ocorre quando mais de uma letra pode, na mesma posição, representar o mesmo som, assim, a opção pela letra correta em uma palavra é, em termos fonológicos, inteiramente arbitrária, ou seja, não há regras específicas que possa nos ajudar diante de tal impasse, a solução, para tanto, é memorizar as palavras que apresentam essa arbitrariedade.
Já no que diz respeito ao trabalho com a morfologia, a autora destaca a importância de se ensinar, aos alunos, as regularidades ligadas à morfologia das palavras, tanto o trabalho com os afixos, quanto com os prefixos, pois atividades voltadas especificamente para os aspectos morfológicos ajudam, segundo ela, na fixação da grafia correta das palavras.
Quanto ao conhecimento das variedades linguísticas, Lemle frisa a importância de se respeitar a fala peculiar dos alunos e de não se cometer o chamado preconceito linguístico, pois, além de ser um equívoco linguístico, é também um desrespeito humano e um erro político dizer que determinados grupos sociais falam errado, haja vista que geralmente essas pessoas não fazem parte de um contexto sociocultural e socioeconômico favorável à padronização da língua formal.
Miriam Lemle também destaca a necessidade de se olhar para os erros de escrita dos alfabetizandos com certa atenção teórica, pois nos ajuda a diagnosticar em qual etapa do processo de aquisição da leitura e da escrita os mesmos se encontram. Para tanto, ela classifica os erros dos alunos em três ordens: falha de primeira ordem, falha de segunda ordem e falha de terceira ordem.
A falha de primeira ordem indica que o alfabetizando se encontra na fase rudimentar da alfabetização, isto porque apresenta leitura lenta e com soletração de cada sílaba e escrita apresentando erros de correspondência letra-som.
A falha de segunda ordem, por seu turno, assinala que o alfabetizando ainda se encontra na etapa biunívoca de correspondência entre letras e sons, desse modo, o aluno comete erros de transcrição fonética, isto é, escreve como se fala, e lê pronunciando cada letra e enfatizando o valor central dos sons das letras.
Por fim, a falha de terceira ordem, a qual, em última instância, avalia que o já alcançou o saber ortográfico e já domina, com bastante propriedade, as correspondências entre fonemas e grafemas. Assim sendo, suas falhas se limitarão a erros de arbitrários da língua portuguesa, isto é, às trocas entre letras concorrentes. Constata-se, assim, que no que compete à leitura, o aluno será capaz de pronunciar naturalmente as palavras, sem maiores dificuldades.
Com relação à metodologia de ensino, percebe-se, na autora, uma postura extremamente ética e coerente com sua formação acadêmica, uma vez que ela, mesmo não tratando diretamente das questões metodológicas, por acreditar ser uma área própria dos pedagogos, sugere que se trabalhe com as crianças, no início da alfabetização, com letras que mantenham relações biunívocas entre si, isto é, que correspondam unicamente a um determinado som e vice-versa. Neste caso, deve-se dar preferência a vogal a e as consoantes p, b, t, d, f e v. Lemle ressalta que, com essas letras, podem ser formadas as primeiras palavras e frases, podendo, inclusive, criar versinhos e musiquinhas.
Como proposta didático-pedagógica, é sugerido que se aplique atividades que estimulem o interesse e a atenção das crianças, para tanto, pode-se propor, aos educandos, joguinhos de palavras cruzadas, tomar melodias conhecidas e cantarolá-las e diversas outras atividades que respeitem o nível de desenvolvimento cognitivo dos alfabetizandos.
Ainda com relação ao aspecto metodológico, vale frisar que, apesar de algumas crianças conseguirem fazer leitura por adivinhação, é tarefa do professor alfabetizador ensinar os alunos a decodificarem as palavras, pois é por meio da decodificação que se forma um leitor verdadeiramente autônomo.
No entanto, apesar de propor o que foi dito acima, a autora sublinha que a língua escrita deve ser adquirida pelo mesmo mecanismo natural que nos leva a adquirir a língua falada, portanto, constata-se certa “naturalização”, por parte dela, com relação à metodologia de ensino, haja vista que para ela é mais importante a familiarização das crianças com os livros do que a defesa concreta de um método específico para alfabetizar.
Por fim, cabe destacar, aqui, a relevância desta obra para nós, futuras professoras, a partir do momento em que sabemos que a boa ciência sana a má consciência. Portanto, eis a nossa tarefa, árdua, sem dúvida, mas que sempre pode ser aperfeiçoada e compartilhada com os que estão a nossa volta.


Referência:

LEMLE, M. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2009.


A EDUCAÇÃO COMO MERCADORIA E O BANCO MUNDIAL COMO MERCADOR


Pautado em uma análise essencialmente política e econômica, o artigo O Banco Mundial e a Educação: reflexões sobre o caso brasileiro (Vozes, 1995, p. 169-195), da pesquisadora, mestra em Educação, especialista em Políticas Públicas e Gestão Educacional, doutora em Ciências da Educação e professora da Universidade de Brasília, Marília Fonseca, traz à tona uma riquíssima discussão acerca das propostas economicistas voltadas à educação.
Respaldando-se teoricamente tanto em publicações veiculadas pelo Ministério da Educação (MEC), quanto nos documentos de política setorial produzidos pelo Banco Mundial nos anos de 1970, 1974, 1980 e 1990, a autora analisa as condições, propostas e diretrizes outorgadas pelo Banco Mundial, em certa parceria estreita com o Fundo Monetário Internacional (FMI), para a concessão de empréstimos aos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.
Percebe-se então, à medida que essas proposições vão sendo esclarecidas no decorrer do texto, que os países que se submetem às condições impostas pelo BIRD, para que o financiamento dos seus projetos seja aprovado por tal Banco, perdem, em certo grau, aquilo que podemos chamar de autonomia política e econômica. E isto ocorre justamente porque as cláusulas contratuais do Banco Mundial são legisladas com este outro intento, isto é, de permitir que os países-membros (onde 50% dos votos são controlados por cinco países: Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Japão) intervenham diretamente na economia política dos países cujo crédito dos empréstimos foi concedido.
No que toca às condições de financiamento voltadas à educação, cabe frisar dois tópicos que não devem passar despercebidos: o primeiro é que, embora a política de crédito do BIRD se autodenomine “cooperação”, esse mesmo financiamento se integra à dívida externa do país para com as instituições bilaterais, multilaterais e, principalmente, para com os bancos privados, haja vista que ele corresponde a um empréstimo de tipo convencional, com todas as suas taxas de compromisso, juros e demais encargos; o segundo é que, de acordo com os dados oficiais divulgados pelo MEC, a participação nacional, no que concerne ao plano financeiro, foi muito maior que a do próprio BIRD, a saber, na execução do primeiro projeto (1971 - 1978) a participação nacional foi de 65,5%, enquanto o Banco Mundial custeou apenas 34,5%, e é no segundo projeto (1984 - 1990) que se constata, efetivamente, o quão pífia foi a participação do BIRD com relação à concessão de créditos, representando apenas 22% versus os 78% da participação nacional.
Outro ponto que deve ser ressaltado é o que diz respeito às condições para que esses projetos venham a ser aprovados, mais precisamente a cláusula que impõe necessariamente a exportação de equipamentos técnicos de outros países, o que constata, por si só, dois pontos de extrema relevância: o primeiro é que confirma aquilo que foi dissertado a pouco, ou seja, a questão de como o BIRD interfere na autonomia político-econômica dos países cujos empréstimos lhes são concedidos; o outro, e o mais importante, é que, ao impor a livre liberdade comercial entre diferentes territórios, pode-se evidenciar, claramente, o caráter neoliberal que há por trás da proposta do Banco Mundial, o que, como se sabe, justifica a privatização do ensino público e a tentativa de mercantilizar a educação como um todo.
É válido ressaltar que, além da problemática estrutural ligada a essa política econômica, a própria conjuntura do país, na época, não fora positivamente favorável a esses projetos educacionais, haja vista que o estudo da professora Marília Fonseca aponta inúmeras dificuldades na execução dos mesmos, como, por exemplo, atrasos na construção das instituições de ensino, metas aquém dos limites traçados e desejados, evasão de alunos a até mesmo problemas na aquisição de materiais e equipamentos, como foi dito anteriormente com relação à obrigatoriedade das exportações.
Por fim, vale sublinhar que, mesmo que a experiência desses projetos mostre que os mesmos não beneficiaram efetivamente o setor educacional, algumas inovações relevantes foram introduzidas a partir dos mesmos, como é o caso da criação de cursos de curta duração de engenheiros de operação e a introdução do modelo escola-fazenda. No entanto, isto não justifica necessariamente tal empreendimento milionário, pelo contrário, os dados empíricos dos quais se dispõem mostram claramente que, no âmbito da educação básica, os resultados práticos dos acordos com o BIRD não legitimam os seus custos, muito menos a sua continuidade.


Referência:

FONSECA, M. “O Banco Mundial e a educação: reflexões sobre o caso brasileiro”. In: GENTILLI, P. (org.). Pedagogia da exclusão. Petrópolis: Vozes, p. 169-195, 1995.



ANTÍGONA E A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: TRANSGRESSÃO E DIALÉTICA


Cumpri contra o destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque cumpri.”
(Fernando Pessoa)


Será um belo fim se eu morrer tendo cumprido o meu dever[1], eis o que diz Antígona, em linhas gerais, à sua irmã Ismene. E é assim que introduzimos esta dissertação, apresentando, desde o início, o fim escolhido por tal filha de Édipo, pois, se é verdade que o salário do pecado é a morte[2], a morte, à Antígona, apresenta-se desde o princípio como o pagamento de sua transgressão.
A transgressão cometida pela princesa tebana será, portanto, o elemento-chave deste texto, pois é a partir dela que proporemos uma leitura dialética em Antígona – e tal leitura, por sinal, será nosso objetivo a ser alcançado.
Recorreremos, portanto, à seção VI da Fenomenologia do Espírito, do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, bem como a alguns parágrafos introdutórios desta mesma obra, a fim de contextualizar e evidenciar esse caráter dialético que buscamos empreender. Dito isto, dedicamo-nos, agora, a apresentar, brevemente, esta peça clássica da dramaturgia grega, para logo em seguida analisá-la sob o ponto de vista já mencionado.
Filha do relacionamento incestuoso entre o rei Édipo e sua própria mãe Jocasta, descendente de Lábdaco, fundador de Tebas, Antígona é, antes de tudo, uma personagem que escolhera a morte.
Irmã de Ismene e dos fratricidas/suicidas Etéocles e Polinice, Antígona, de acordo com o Corifeu, é uma jovem de caráter indomável, que não se deixa dominar pela desgraça e se mostra o tempo todo inflexível, tal qual seu pai. Para sua irmã, no entanto, a jovem pode ser vista, até certo ponto, como uma imprudente e até mesmo como uma louca, pois, segundo Ismene, além de não ser prudente tentar o que é irrealizável, é uma loucura tentar aquilo que ultrapassa as forças humanas[3].
Condenada à morte por ter infringido o édito de seu tio Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso, esta jovem não se intimida nem se sente coagida nem mesmo na presença de quem a sentenciou a tal condenação.
Diante do governador tebano Creonte, a filha de Édipo reafirma sua transgressão e confessa ter sepultado seu irmão Polinice, o qual, por ordem da referida autoridade, estava terminantemente proibido de receber honrarias fúnebres – haja vista que este fora acusado de retornar do exílio com o propósito de queimar todo o seu país natal, destruir os deuses de sua família e derramar o sangue dos seus.
Desse modo, venerando as leis divinas, Antígona acaba por desprezar a legitimidade das leis da cidade, sob o argumento de que as primeiras jamais foram escritas e mesmo assim são irrevogáveis, isto é, não existem a partir de ontem ou de hoje, mas são eternas, enquanto as leis citadinas são mutáveis e, particularmente nesse caso, fruto da vontade de um tirano[4].
É válido mencionar que Antígona era noiva de Hemon, filho de Creonte com Eurídice, porém tal jovem desposa-se mesmo é com o Aqueronte, um dos rios do Inferno, tendo como leito nupcial o túmulo no qual a mesma é aprisionada até o dia em que se enforca com os cadarços amarrados em sua cintura.
Como estamos diante de uma tragédia, Sófocles, autor desta peça, leva a morte não apenas à Antígona, Etéocles e Polinice, mas a estende às figuras de Hemon, que morre ao lado de sua noiva, e Eurídice, que se fere brutalmente logo após saber do suicídio cometido pelo seu filho.
Se é que isto consola os modernos, pode-se inferir que talvez Antígona e Hemon tenham tido suas bodas no Hades, mas o “felizes para sempre”, no entanto, não contempla este infeliz casal.
Por fim, para finalizar esta narrativa, ouso afirmar que Antígona foi, sobretudo, aquela que morreu antes de Tebas.
A partir do que foi exposto, percebe-se que é o ato executado por Antígona que a torna culpada. Culpada, portanto, porque agiu – pois só o não agir é inocente[5]. No entanto, ela conhecia antecipadamente a lei e sabia a potência que lhe opunha, portanto sua culpa é mais pura[6], pois as tomou por violência e injustiça, e quando cometeu o delito, sabia que assim o fazia.
Desse ponto de vista, nossa heroína não agiu com má-fé, no sentido sartriano do termo; pelo contrário, ao assumir sua responsabilidade enquanto autora do crime, mostra-se livre, dado que deixa transparecer a consciência da necessidade do seu ato.
Do ponto de vista hegeliano, o ato já é o Si efetivo[7], ou seja, o agir é o passar do pensamento à efetividade[8]. Porém, o ato perturba a calma organização do mundo ético. Assim, mediante o ato, o que antes se apresentava no mundo ético como ordem e harmonia entre duas essências, às quais se confirmavam e se completavam mutuamente, agora se mostra como uma transição de opostos, cuja anulação de si mesmo e do outro se sobrepõe.
De acordo com Hegel, o movimento do mundo ético tem por fundamento e por atividade, respectivamente, o reino da eticidade e a consciência-de-si. Esta, como consciência ética, orienta-se para o dever. Eis, pois, o que faz Antígona ao desprezar a Lei humana e legitimar sua ação na Lei divina, uma vez que esta última assegura-lhe a legalidade do seu ato, qual seja, o dever supremo de enterrar seu irmão Polinice. Mas não apenas isto, ou melhor, no caso citado, a consciência-de-si não substitui simplesmente a Lei humana pela divina por um capricho de sua vontade[9], pois um asseverar seco vale tanto como qualquer outro[10], mas principalmente porque, como está orientada para a essencialidade ética, não existe nenhum arbítrio para essa consciência, bem como, também, nenhum conflito e nenhuma indecisão, muito pelo contrário, “a essencialidade ética é para essa consciência algo imediato, inabalável e imune à contradição” (HEGEL, op. cit., p. 320, § 465).
Logo, vê-se que a consciência ética sabe o que tem de fazer e decidiu pertencer a uma das duas leis: seja à humana, seja à divina. Essa imediatez da consciência é, conforme Hegel, um Ser-em-si, e tem, por assim dizer, significação natural. Ora, é a natureza de tal significação que atribui um sexo a uma lei e outro a outra. Portanto, temos aqui a clara contraposição entre Antígona e o Creonte, a Lei Divina e a Lei humana.
Antígona, assim, representa a dimensão da Lei divina, a noite, a família, a morte, os deuses inferiores, o feminino, o particular, o culto aos mortos. Creonte, inversamente, representa a Lei humana, o dia, o Estado, a vida, os deuses superiores, o masculino, o universal, a preocupação com os vivos. Enquanto a Lei humana é a lei do dia e do homem, visível e pública, voltada para regulamentar as condutas humanas, a Lei divina é concebida como a lei da mulher, habitando o lar e a esfera do sagrado. Logo, temos o conflito, que, em Sófocles, é representado pela oposição entre sobrinha e tio, que acaba em tragédia; em Hegel, porém, vemos a noção de uma consciência que se desenvolve mediante o conflito. Eis, pois, a dialética: o espírito de contradição organizado.
Segundo a nossa avaliação, a lei está para Antígona e Creonte assim como o conhecimento está para a verdade. Lembremos o que disse Hegel a respeito do conhecimento: ao criticar o modo como a Filosofia precedente concebe o conhecer – ora como um instrumento com que se domina o absoluto, ora como um meio através do qual o absoluto é contemplado[11], portanto uma representação oca do saber[12] –, Hegel introduz, pela primeira vez, a ideia de conhecimento como algo não separado da verdade. Assim, conforme o pensamento hegeliano, a verdade não se encontra separada do conhecer, pelo contrário, ela está, desde sempre, presente nele. Assim vemos a lei no filho de Meneceu e na filha de Édipo, não como algo estranho ao Si de ambos, mas como expressão de suas vidas. No caso de Creonte em particular, negar a Lei humana é negar a si mesmo, pois, assim como para o rei Luís XIV o Estado era Si próprio[13], a Lei humana, para Creonte, é o seu Self.
Vale destacar que a consciência ética vê o direito somente do seu lado[14], e vê, no outro, o abuso. Logo, “a consciência que pertence à lei divina enxerga, do outro lado, a violência humana contingente. Mas a consciência, que pertence à lei humana, vê no lado oposto a obstinação e a desobediência do ser-para-si interior” (HEGEL, op. cit., p. 321, § 466). Assim, no que diz respeito à figura de Creonte, convém sublinhar que este não é propriamente um déspota, não é alguém que está em erro. Seu papel, como governante, é também o de legislar, portanto sustenta que a lei do Estado, a autoridade do Governo, deve ser respeitada e cuja transgressão deve ser punida, pois se configura como um crime. Tampouco Antígona é uma mera transgressora sem causa, tendo em vista que enterrar seu irmão, mesmo sendo um crime, é um ato de honra em memória de Polinice, afinal, como indaga Antígona à Ismene, “quem é ele para separar-me dos meus?” (SÓFOCLES, op. cit., p. 10, V. 48).
No que diz respeito à culpa, vale lembrar que é pelo ato que a consciência-de-si torna-se culpa. Desse modo, a culpa recebe também a significação de delito, pois a consciência-de-si consagrou-se apenas a uma lei, e, ao renegar a outra, a viola por meio do seu ato. Nas palavras do Hegel, essa culpa consiste em “escolher só um dos lados da essência, e em comportar-se negativamente para com o outro; quer dizer, em violá-lo” (HEGEL, op. cit., p. 324, § 468). Ora, o que fizeram Antígona e Creonte, com relação ao decreto deste e o ato daquela, senão em comportar-se negativamente com relação ao outro? O que fizeram ambos senão, ao seu tempo, cada qual a seu modo, em escolher apenas um lado da essência e violar o lado oposto? Têm-se assim, no tribunal de Sófocles e Hegel, dois réus confessos[15]: mea culpa, mea maxima culpa[16].
Por fim, no que tange à discussão a respeito da essência, vale mencionar que esta é a unidade das duas leis, mas o ato, no entanto, só realizou uma, contrapondo-se, portanto, à outra. Contudo, como na dialética do senhor e do escravo[17], por ambas as leis estarem unidas na essência, o cumprimento de uma evoca a outra, mas evoca como essência violada.
Finalizando, desde já, esta dissertação, acreditamos termos alcançado – principalmente a partir da leitura do parágrafo anterior – o nosso objetivo proposto, que é, como se sabe, buscar ler Antígona pelo viés da dialética hegeliana, utilizando-se, para tanto, a transgressão como meio de evidenciar o choque entre o rei Creonte e sua sobrinha.   
Antígona, como sabemos, está no Hades, em companhia dos mortos que tanto venerava. Por isso é Creonte, e não a filha de Édipo, que, após arrepender-se de ter infringido a Lei dos deuses, concluirá o presente trabalho: “suspeito que observar as leis estabelecidas é o melhor a fazer no percurso desta vida” (SÓFOCLES, op. cit., p. 82, V. 1114-1115). Eis a síntese.


Referências:
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011.

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donald Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.






[1] Segundo a tradução de Donald Schüler, nesta passagem, Antígona diz literalmente o seguinte: “Se ao fazê-lo tiver que morrer, que bela morte será!” (SÓFOCLES, 2007, p. 11, V. 72).
[2] Epístola de Paulo aos Romanos, cap. 6, vers. 23.
[3] “[...] Obedecerei a quem está no poder; fazer mais que isso não tem nenhum sentido” (SÓFOCLES, op. cit., p. 11, V. 67-68).
[4] Convém sublinhar que a palavra tirano (tyrranos) possui uma dupla significação, podendo designar tanto a pessoa de um déspota, quanto um governante que conquista o poder pelo próprio mérito, nesse caso, rompendo-se com a antiga linhagem dos Labdácidas, uma vez que não apenas Édipo está morto, bem como também seus dois filhos: Etéocles e Polinice.
[5] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 6 ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011. p. 323, § 468.
[6] Idem, ibidem, p. 325, § 470.
[7] Idem, ibidem, p. 320, § 464.
[8] Idem, ibidem, p. 322, § 467.
[9] Afinal a consciência sabe que “a diferença entre apoiar-se em uma autoridade alheia, e firmar-se na própria convicção – no sistema do Visar e do preconceito – está apenas na vaidade que reside nessa segunda maneira” (Idem, ibidem, p. 75, § 78)
[10] Idem, ibidem, p. 74, § 76.
[11] Idem, ibidem, p. 71, § 73.
[12] Idem, ibidem, p. 73, § 76.
[13]L’État c’est moi.” (O Estado sou Eu).
[14] A respeito disto, vale mencionar o que disse Hemon ao seu pai, ao pedir que este reconsidere sua sanção para com Antígona: “Não carregues em ti só uma morada da verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente estranha aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio” (SÓFOCLES, op. cit., p. 53, V. 705-709).
[15] Creonte, após dar-se conta da morte de Hemon, reconhece a sua culpa: “[...] morreste, partiste por desacertos meus, não teus” (SÓFOCLES, op. cit., p. 92, V. 1268-1269). O mesmo se dá com Antígona, quando esta confessa seu crime: “Admito, não nego nada” (Idem, ibidem, p. 35, V. 443).
[16] Trecho da tradicional prece católica Confiteor (Eu confesso).
[17] Hegel, op. cit., p. 147-148, § 189-191.



A DEMOCRACIA EM MICHELS E SCHUMPETER: ESBOÇOS DE UMA LEITURA DIALÉTICA


Tal como pressupõe o materialismo histórico e a dialética hegeliana, a ciência política, enquanto disciplina científica, assim como tudo o que é social e, portanto, histórico, também se move por contradições, quer se passem na esfera científica, quer se deem na esfera filosófica.
A antropologia por sua vez, principalmente a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, desde meados do século XX já advogava a descoberta segundo a qual o pensamento humano se organiza e se estrutura mediante a construção de pares dicotômicos, ou seja, a classificação do mundo à nossa volta só se tornou possível a partir da elaboração de pares conceituais opostos.
A política, por conseguinte, não haveria de ficar excluída de tal princípio estrutural, uma vez que em seu arcabouço conceitual encontram-se várias categorias que funcionam justamente por pares de oposição, como por exemplo os conceitos de igualdade versus liberdade (oposição clássica da política como um todo), liberdade positiva versus liberdade negativa, público versus privado, liberalismo versus socialismo, indivíduo versus comunidade, mercado versus fórum, autocracia versus democracia, democracia representativa versus democracia participativa, ciência política versus filosofia política.
A filosofia política, por seu turno, sempre ocupou, dentro da política, um papel de destaque e até mesmo de hegemonia quando comparada a uma ciência estritamente empírica, isto é, voltada para a observação dos fatos em si e sem preceitos valorativos. Contudo, como se ressaltou a pouco, a ciência política não é uma área do conhecimento estática, muito menos a-histórica, e se é nos permitido afirmar, diríamos que a mesma caminha nos trilhos da dialética, isto é, opera, segundo a definição de Georg W. F. Hegel, no espírito da contradição organizado. Logo, é de se esperar que uma ciência política, amparada preponderante na empiria, fizesse o contraponto e negasse os preceitos norteadores da filosofia política: eis, pois, a antítese cristalizada nos trabalhos de Robert Michels e Joseph Schumpeter.
Embora partindo de objetos analíticos distintos, tanto Michels quanto Schumpeter se debruçaram sobre a problemática do regime democrático, buscando contemplá-lo não a partir de axiomas filosóficos, mas, sobretudo, por meio da análise do concreto, como dizia Karl Marx. Para eles, a democracia não precisa ser educada muito menos é uma providência divina, tal qual pensava Alexis de Tocqueville, também não é uma forma de governo do povo, pelo povo e para o povo, como presumia Abraham Lincoln, e sim mais um meio, dentre outros, de gerir a burocracia estatal.
Em sua obra Sociologia dos partidos políticos Michels se defronta com aquilo que se configura como eletismo democrático, o que, em linhas gerais, nada mais é do que a oligarquização dos partidos ao chegarem à gerência do Estado, inclusive os de esquerda.
Para tanto, o mesmo analisa a conjuntura política de seu período, em especial o Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD), e a partir de tal análise, formula a sua famosa lei de bronze da oligarquia, também conhecida como lei de ferro.
Essa lei da necessidade histórica da oligarquia se funda numa série de fatos fornecidos pela experiência. Assim, de acordo com Michels, na base conservadora da organização dos partidos já se encontra tendências oligárquicas, isto é, toda organização partidária representa uma potência oligárquica repousada sobre uma base democrática. Vê-se, pois, que "a organização é a fonte de onde nasce a dominação dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os mandantes, dos delegados sobre os que delegam. Quem diz organização, diz oligarquia" (MICHELS, 1982, p. 238).
Por esse viés, nota-se que a sua concepção de democracia em nada se relaciona com pressupostos normativos, muito menos a encara sob o ângulo da participação popular, aliás, como também ressalta o autor, a participação ativa das massas tende a desembocar em governos totalitários, como é o caso do nazismo alemão e o fascismo italiano.
O trabalho de Schumpeter, por outro lado, traz à luz a concepção de que a democracia nada mais é do que do que um método, uma forma de mediar os interesses da esfera política.
Segundo ele a democracia opera tal como a lógica do mercado, em uma espécie de laissez-faire da vida política, no qual os candidatos a cargos públicos se vendem e se competem entre si. Contudo, em tal mercado não se encontra presente a famosa mão invisível teorizada por Adam Smith, haja vista que o papel do método democrático, enquanto sistema institucional, é o de justamente regular e mediar tal comércio.
Em Capitalismo, socialismo e democracia Schumpeter põe à prova a doutrina clássica da filosofia, criticando valores como o bem comum e a vontade geral. Como não é possível saber qual é a vontade geral do povo muito menos seguir o farol orientador da política, ou seja, o bem comum, uma vez que ele não existe, dada a pluralidade de valores do gênero humano, o autor em questão afirma ser essa concepção democrática irrealista, fundada em princípios simplesmente valorativos, não levando em consideração a realidade empírica.
Ainda no que concerne a problemática da vontade geral, é válido sublinhar que, segundo Schumpeter, há o perigo de grupos expoentes de interesses econômicos explorar, moldar e até mesmo criar a vontade coletiva, tendo em vista que, na análise empírica dos processos políticos, constatou-se que não há uma vontade geral essencialmente genuína, e sim uma vontade artificialmente fabricada.
De acordo com sua concepção, portanto, a democracia pode ser pensada como um método democrático, e este, entendido como um sistema institucional que orienta a tomada das decisões políticas, a partir do qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos dos eleitores.
Vimos, assim, o quão contrastante são os conceitos e as análises de Michels e Schumpeter com relação aos trabalhos dos filósofos políticos, o que os coloca, por exemplo, dentro da nossa leitura dialética, na posição de antítese, ou seja, a radicalização da negação de preceitos normativos e valorativos no âmbito da ciência política. Contudo, convém ressaltar, por fim, que a discussão da participação política e da democracia em geral não se finda por aqui, e, portanto, não seria coerente procurar extrair uma síntese a partir dos autores aqui problematizados, dado a limitação do referencial teórico aqui ensaiado.


Referência: 

MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: Editora da UnB, 1982.


TEORIA VERSUS EMPIRIA: KARL MARX E O MATERIALISMO HISTÓRICO


O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações eis o que afirma Marx ao discutir o seu método de apreensão da realidade concreta. Em linhas gerais, pode-se afirmar que no bojo de tal afirmação se encontra, desde já, a síntese do materialismo histórico, isto é, a maneira pela qual o mesmo resolveu o problema da relação entre teoria e empiria. Contudo, limitarmo-nos ao excerto supracitado seria limitar a própria complexidade da vida social, e, portanto, cair num reducionismo ingênuo. Assim, faz-se necessário nos reportarmos à sua principal obra de caráter metodológico: A ideologia alemã.
A ideologia alemã é, entes de tudo, um acerto de contas de Karl Marx e Friedrich Engels para com a filosofia alemã precedente – mais especificamente para com o idealismo hegeliano e o materialismo feuerbachiano. Desse modo, é aplicado em Hegel e Feuerbach os princípios da própria dialética: negação, conservação e superação. Para tanto, a fim de se esboçar melhor o que foi dito, discutir-se-á os dois filósofos em questão em dois parágrafos distintos e subsequentes.
 O idealismo hegeliano parte da premissa de que a realidade, tal como se apresenta, é fruto da materialização da Ideia (leia-se Espírito Absoluto). Sob esse ponto de vista, Hegel, contrariando a lógica da identidade aristotélica, traz à tona a ideia de contradição como motor da história, isto é, a dialética e os processos históricos, porém no plano da Ideia, ou seja, contradições do próprio Espírito Absoluto. Desse modo, a realidade deve ser apreendida analiticamente por meio de categorias universais, isto é, atemporais e a-históricas, portanto, eternas.
O materialismo contemplativo de Feuerbach (concebido em Onze teses sobre Feuerbach como o velho materialismo) é, em linhas gerais, o oposto da filosofia hegeliana. Por essa via, a realidade deve ser apreendida a partir dela mesma, isto é, do sensível, do material, do “concreto”, daquilo que pode ser contemplado empiricamente. Assim, tal concepção, que se volta contra a ideia de concepção, nega as mediações conceituais como elemento metodológico de apreensão da realidade, uma vez que vê nessas mesmas mediações abstratas uma forma de mistificar a matéria, a realidade sensível, a realidade aparente.
Diante do que foi apresentado, pode-se dizer, tomando-se emprestado o tipo ideal weberiano, que Hegel representa a dimensão essencialmente teórica da concepção metodológica de Marx; por outro lado, Feuerbach, em conjunto com as produções teóricas da economia política inglesa (que tanto contribuiu e influenciou a teoria social marxiana), representam a cristalização da empiria. Entretanto, tudo isso ainda não é o bastante, afinal apenas foram apresentadas as concepções filosóficas de tais autores, o que em si mesmo não basta. Portanto, tal como na dialética, faz-se necessário não apenas afirmar, mas, sobretudo, negar e sintetizar – eis, pois, o que empreenderemos fazer a partir de agora.
No que diz respeito a Hegel, Marx conserva em seu método a dialética e os processos históricos, ou seja, as contradições da história (afirmação, negação e negação da negação), mas nega, absolutamente, os universais abstratos, superando-os, por sua vez, mediante abstrações razoáveis (ou concretas, isto é, dadas pela própria base material a ser analisada). No que tange a Feuerbach, é-lhe conservado a ideia de realidade sensível (ou realidade empírica), para que, partindo-se da observação e análise desta, alcance-se, mediante as abstrações razoáveis e as contradições históricas, uma outra “camada” da realidade que não se apresenta superficialmente, para que assim se possa conceber a estrutura da sociedade investigada. Entretanto, ainda no que concerne a Feuerbach, a crítica severa de Marx consiste na negação deste às categorias conceituais como modo de apreender o sensível, afinal o concreto, tal como concebe o materialismo histórico, é síntese de múltiplas determinações, as quais, por sua vez, não se dão apenas no plano do sensível, do observável, do contemplativo, do empírico, do material.
Não podemos deixar de frisar a discussão de Marx com o que hoje chamamos de economia política clássica, mais precisamente com Adam Smith e David Ricardo. Para os economistas dessa vertente, assim como para Feuerbach, a aparência em si é o bastante para se empreender uma análise científica da vida social, e, por assim prosseguirem, não veem as contradições postas na própria base material. Desse modo, a economia política, por não pensar a economia vinculada às dinâmicas do Estado (situado em um determinado contexto histórico), acaba por não apreender verdadeiramente os fenômenos internos da sociedade, tendendo a naturalizá-los. Assim, o materialismo histórico evidencia que as ideias não nascem do vácuo e não são autônomas em si, haja vista que as mesmas não se encontram descoladas do mundo material. Logo, Marx nos mostra que os meios de produção intelectual pertencem, sobretudo, à classe que dispõe dos meios de produção material, uma vez que os pensamentos dominantes não podem ser outra coisa senão a expressão ideal das relações materiais dominantes: eis a síntese marxiana.


O OBJETIVISMO SOCIOLÓGICO EM DURKHEIM


É preciso tratar os fatos sociais como coisas – se é verdade que tal afirmação corresponde a primeira e a mais fundamental regra da sociologia durkheimiana, não é menos verdade que dentro dela já se encontra preconcebido o embrião de sua concepção objetivista de ciência.
Tratar os fatos sociais como coisas implica, sobretudo e antes de tudo, reconhecê-los como fenômenos exteriores às consciências individuais; logo, vê-se demarcada nitidamente a linha que separa o indivíduo da coletividade, a psicologia da sociologia, a subjetividade da objetividade. A princípio, contudo, pode-nos parecer que o que se está a fazer nada mais seja do que apenas uma demarcação teórico-metodológica entre essas duas áreas do conhecimento, no entanto, nesse contexto específico, o que se está reivindicando em suprassumo é a fundação da sociologia enquanto uma ciência amparada em bases sólidas, isto é, objetiva, específica e metódica, portanto, autônoma em relação a outras ciências e formas de conhecimento.
Tratar os fatos sociais como coisas reivindica, por sua vez, reconhecer a existência do fato social em si. Ora, o que isso significa senão o reconhecimento de um objeto específico pertencente a uma ciência específica? Como se sabe, para que uma ciência se constitua enquanto tal, exigi-se dela um objeto que lhe seja próprio, o que lhe assegura, por esse viés, a sua autonomia com relação às demais ciências. Logo, tratar os fatos sociais como coisas implica, necessariamente, reconhecer a sociologia como uma ciência própria, dotada de um objeto particular.
Assim, ao definir os fatos sociais como maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos e dotados de poder de coerção, Durkheim não está simplesmente criando um conceito abstrato da teoria social, mas está, inclusive, demarcando as fronteiras da Sociologia para com as ciências naturais como um todo, e para com a psicologia em particular.
No entanto, para se compreender a discussão acerca do nascimento da sociologia enquanto disciplina científica nos moldes de Émile Durkheim, é preciso levar em consideração não apenas os seus princípios cientificistas cristalizados em As regras do método sociológico, bem como também o seu contexto de ruptura, fundação e conquista.
Desse modo, observar-se-á, por exemplo, as contribuições metodológicas tomadas de Francis Bacon, como é o caso do abandono das prenoções (quer literárias, quer metafísicas, quer estéticas, que ideológicas) e por parte do sociólogo, e a questão da dúvida metódica e a certeza do conhecimento, influências diretas de René Descartes. Em contrapartida, tem-se a crítica tanto ao Auguste Comte, quanto ao Herbert Spencer, uma vez que estes trabalhavam mais com ideias formuladas, influenciadas principalmente pela economia política e pela ciência da moral, do que propriamente com a ciência empírica.
Por outro lado, é válido destacar a aproximação do vocabulário da sociologia durkheimiana para com a biologia e a medicina – as quais, diga-se de passagem, já eram reconhecidas como ciências legítimas. Assim, à guisa de exemplos, pode-se citar a divisão da sociologia em fisiologia social e morfologia social,  a ideia de reino psicológico e reino social, bem como a concepção de fato social normal e patológico como vocábulos próprios das ciências naturais e da medicina. Tal empreendimento revela, até certo ponto, a busca de Durkheim pela legitimação científica da sociologia; por outro lado, ao procurar o critério de normalidade dentro da sociedade (fato social normal como algo diferente de fato social patológico), Durkheim está procurando, sobretudo, as regularidades da vida social, uma vez que o fato social normal deve condizer com as condições da vida coletiva; logo, a possibilidade de se formular leis e de prever fenômenos sociais.   
No que tange propriamente à questão do método sociológico, Durkheim é seguidor de uma corrente analítica, e, por vez, defensor da unidade metodológica dentro das ciências sociais. No que diz respeito à sua metodologia, o mesmo estabelece regras que podem ser apreendidas em seis verbos: definir, observar, distinguir, classificar, explicar e provar – eis, mais uma vez, a sua concepção objetivista de ciência.
Vale frisar, por fim, que o principal objetivo de Durkheim é estender o racionalismo científico à conduta humana. Por sua vez, a explicação sociológica consiste especificamente em estabelecer causalidade. Assim, para Durkheim, se se analisar a conduta humana, chegar-se-á a relações de causa e efeito. Logo, uma operação racional poderá transformar essa mesma conduta em regras de ação para o futuro, portanto, “racionalizá-la”. 


A CIÊNCIA EM KUHN, POPPER E BOURDIEU: ESBOÇOS DE UMA LEITURA DIALÉTICA


Tal como pressupõe o materialismo histórico e a dialética hegeliana, a epistemologia em geral, assim como tudo o que é social e, portanto, histórico, também se move por contradições.
No que compete à discussão acerca da cientificidade no âmbito das ciências sociais em particular, vê-se que essa nunca se assentou sobre um paradigma específico (tomemos o exemplo da sociologia, na qual se tem desde concepções essencialmente empiristas e hermenêuticas, como se tem também concepções dialéticas).
As referidas contradições, por seu turno, organizam-se, de certa forma, por pares de oposição, o que é próprio do homem, haja vista que, conforme a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, não apenas o pensamento humano se organiza e se estrutura mediante a construção de pares dicotômicos, como principalmente a classificação do mundo só se tornou possível a partir da elaboração de pares conceituais opostos.
A epistemologia das ciências sociais, por conseguinte, não haveria de ficar excluída de tal princípio estrutural, afinal, o que é a discussão acerca do subjetivismo versus objetivismo, do racionalismo versus relativismo, da filosofia versus ciência senão a cristalização desse modo universal de se pensar o mundo?
Dito isto, o presente ensaio buscará defrontar e contrastar as concepções científicas de Thomas Kuhn, Karl Popper e Pierre Bourdieu à luz de uma leitura dialética, procurando evidenciar as contradições e superações esboçadas nas obras dos referidos autores.
Thomas Kuhn, como se sabe, não foi um cientista social. No entanto a sua obra, A estrutura das revoluções científicas, impactou não apenas os estudos da física, bem como também os das ciências humanas – repercutindo, inclusive, na sociologia do conhecimento.
Em linhas gerais, Kuhn traça uma linha evolutiva que passa pelo que ele chama de pré-ciência (que seria uma ciência sem paradigmas dominantes); depois, um período de ciência normal (no qual se tem apenas um paradigma dominante, pelo menos até que este consiga fornecer problemas e resoluções modelares à comunidade científica); posteriormente, prevê-se uma crise (na qual um paradigma rival entra em confronto com o dominante) que leva a uma revolução científica (momento em que há um episódio de desenvolvimento não cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior) e, novamente, mais um novo período de ciência normal (portanto, “uno-paradigmático”), e assim sucessivamente, uma vez que a ciência, conforme tal visão, não se desenvolve por acumulação, mas por rupturas de paradigmas.
Até aqui tudo bem, tendo em vista que não se percebe, nitidamente, um viés relativista, cujo mesmo é acusado de se posicionar. Contudo, é válido perguntar: o que é um paradigma?
No limite de sua definição, paradigma nada mais é que uma concepção de mundo, que dita as regras, os métodos, as teorias e até mesmo os objetos que se pode estudar em um determinado período, o qual, por vez, é compartilhado por toda uma comunidade científica.
Ora, diante de tal definição, é plausível questionar: o conhecimento seria isento de lógica? E a comunidade científica, seria toda ela um corpo homogêneo, assepsiada de contradições e concorrências entre os pares e funcionaria sem o laissez-faire do acúmulo de capital científico? Tais questões, por conseguinte, leva-nos ao Popper e ao Bourdieu, respectivamente.
Superando de certa forma a teoria do Kuhn, Karl Popper, em Lógica das ciências sociais, vem negar a tese de que não se pode justificar o conhecimento científico de forma lógica. Para ele os valores científicos diferem dos valores extracientíficos, e, portanto, a ciência funciona dentro de uma lógica que lhe é própria, e não simplesmente por aquilo que a comunidade científica acredita.
Assim como Kuhn, Popper também refuta a concepção positivista de que se pode observar um fenômeno despido do casaco das prenoções - como propõe o projeto utópico da sociologia durkheimiana. Contudo, Popper não abre mão da objetividade, simplesmente não a procura na figura do pesquisador, e sim na própria forma como a ciência está organizada. Assim, de certa forma, a objetividade científica também está relacionada com a prática social do grupo, afinal a mesma se encontra baseada unicamente sobre uma tradição crítica, mediante a qual é possível criticar um dogma dominante. Desse modo, é possível afirmar que a objetividade não reside na isenção de valores, mas ela é, antes de tudo, um valor científico.
Portanto, a função mais importante da pura lógica dedutiva é a de um sistema de crítica, e a crítica, no que lhe cabe, permite separar os valores e desvalores científicos dos valores e desvalores não científicos, o que nos permite fazer aproximações da verdade. Logo, quanto mais uma teoria resistir aos testes, maior a sua explicação e a maior a sua verdade explicativa. Vale lembrar, no entanto, que dentro dessa perspectiva todas as teorias são falseáveis, uma vez que todas estão sujeitas ao ataque da crítica.
Vê-se, assim, que Popper pode ser lido como uma antítese à tese do Kuhn, uma vez que aquele representa a radicalização da negação deste. Radicalizar, dentro da concepção na qual este ensaio está pautado, não significa nada a mais do que arrancar as coisas pela raiz, e isso, em certa medida, foi feito. Porém, como disse Karl Marx, a raiz do homem é o próprio homem, portanto, segundo a nossa leitura, é Bourdieu quem consegue enraizar o homem à sua prática científica, superando, dialeticamente, a polêmica entre subjetivismo e objetivismo.
A grande novidade que Pierre Bourdieu insere na discussão aqui travada é, sem sombra de dúvida, a noção do conflito, do antagonismo, isto é, do campo científico como um campo permeado de relações de poder, no qual se trava uma luta entre os pares-concorrentes.
Sob esse prisma, não é a objetividade versus a subjetividade que estão se digladiando. O que existe, segundo Bourdieu, é uma relação dialética entre o ator (leia-se cientista) e a estrutura (o campo científico), que se dá mediante uma luta em busca tanto de acúmulo de capital científico, quanto do monopólio da autoridade científica.
De início, é apontado que, tal como o mercado, essa concorrência é desigual desde a saída, tendo em vista que a posição científica e a posição política são indissociáveis, ou seja, o científico não se encontra apartado do extracientífico, como pensa Popper, pois o que é científico é o que se está em jogo, e o que se está em jogo é poder.
Do ponto de vista do monopólio da autoridade, Bourdieu destaca que o domínio do campo passa pelo domínio da técnica, e quem domina o campo estabelece, praticamente, as regras. Percebe-se, mais uma vez, que a capacidade técnica não é autônoma em si, afinal a mesma é definida com base na posição que o agente ocupa no campo, ou, em outras palavras, é definida a partir de relações de poder. Assim, o julgamento da capacidade técnica de um pesquisador passa, necessariamente, pela posição hierárquica que o mesmo ocupa no campo. Logo, não basta possuir capacidade técnica, é preciso assim ser reconhecido.
De certo modo, tal como em Kuhn, é a comunidade científica quem decide o que é ciência, mas essa decisão, por outro lado, não é arbitrária e passa pelo jogo entre o científico e o político, pelo simples fato de todas as práticas científicas serem perpassadas por relações de poder.
Por fim, vale destacar que o pesquisador calcula estratégias que não são propriamente científicas, o que reforça, novamente, a leitura do Bourdieu quanto a indissociabilidade entre o científico e o extracientífico, haja vista que não há escolha científica, pois tais estratégias nada mais são que uma política de investimento que visa nada além que a maximização do lucro propriamente científico, isto é, o acúmulo de capital simbólico, e uma vez se obtendo isso, há o reconhecimento dos pares-concorrentes, portanto, autoridade e legitimidade científica.