terça-feira, 15 de outubro de 2013

AUTORRETRATO DESTEMPERADO


Aos meus avós maternos, Vanda e Pedro,
Com imenso carinho e gratidão.

No autorretrato que me tempero
Costumo dizer,
Sem muito exagero,
Que na minha formação
Faltou sal,
Faltou açúcar,
Faltaram canela, alecrim, cominho e manjericão.
Esqueceram de temperar-me com pimenta-do-reino
E quase não me coraram com urucum,
A ponto de eu ter saído com essa cor,
Pálida,
Meio morta,
Meio viva também,
Porque ainda corre sangue.
Faltou o essencial,
Que é o açúcar e o sal,
A pimenta-do-reino triturada no moinho de Cainana,
A velha Vanda, minha avó,
E o Urucum, vermelho como minha bandeira,
Colhido por Pedro Carneiro, meu avô.
Não obstante,
Sobrou a crítica,
Transbordaram-me de realidade,
Cimentaram-me de fatos,
Que pouco sei interpretá-los.
Como consolo, restou-me as palavras,
Que por pouco não me foram tiradas
Em nome do estudo das leis,
Como queria o meu avô.
Sem sal e sem açúcar,
Nada de pimenta-do-reino, urucum, cominho, alecrim ou manjericão.
Sem leis também, graças ao fracasso do meu primeiro vestibular.
Mas irremediavelmente ligado às palavras,
E, ainda assim, é gozado observar como a vida é irônica,
De certo modo não trair, por completo,
O desejo do meu avô para comigo,
Que é o de defender os injustiçados,
Os escravos da modernidade,
Os marginalizados pelo capital.
Enfim, pratico,
Do meu jeito desajeitado,
A justiça das palavras,
Que é também sem sal,
Sem açúcar,
Sem cominho,
Sem Pimenta-do-reino, canela e urucum.
Eu e o meu desejo doido de mudar o mundo,
Procurando fazer justiça com as próprias palavras,
Buscando verbalizar a transformação social.
Mas nada, nada,
Nada disso justifica meu destempero,
Acho que no fundo, no fundo,
Eu sou bem parecido é com Pedro Carneiro.