A alfabetização nunca foi tão discutida, sob o ponto de vista
das mais diversificadas áreas do conhecimento humano, como nas últimas décadas.
No entanto, apesar do grande número de trabalhos publicados no que diz respeito
a este tema, é sempre possível encontrarmos algo novo, como é o caso
do livro Guia teórico do alfabetizador,
da linguista Miriam Lemle.
Sem dúvida alguma, tal
obra representa uma das maiores contribuições já recebidas, do campo da
linguística, pela pedagogia. Isto porque seu conteúdo, por ser altamente
didático e utilitário, apresenta-se, como o próprio título sugere, como um guia
para alfabetizadores de modo geral, guia este que não se limita apenas à esfera
daquilo que podemos chamar de alfabetização tradicional, isto é, da ênfase
voltada para o domínio do bê-á-bá, mas, principalmente, por trazer à discussão
toda a problemática que há por trás deste tema, como, por exemplo, a questão
dos erros cometidos pelas crianças em processo de alfabetização e as
riquíssimas considerações acerca das variedades linguísticas.
Logo nos primeiros capítulos, mais precisamente no segundo, Miriam
Lemle destaca as capacidades necessárias para alfabetização; segundo ela, o
primeiro desafio encontrado pelo alfabetizando, ou a primeira capacidade que
ele precisa dominar, é a necessidade de compreender a ligação simbólica entre
fonema-grafema, ou seja, entender que as letras representam sons e que quando
juntamos esses sons, os transformamos em palavras; a segunda capacidade, por
sua vez, diz respeito à faculdade de enxergar aquilo que distingue uma letra da
outra, a fim de que a criança perceba que as letras são mais do que meros
rabiscos pretos na página em branco; a terceira capacidade, por fim, restringi-se
à escuta, isto é, o despertar da consciência fonológica, portanto, saber ouvir
e ter consciência dos sons da fala, para distingui-los dos demais sons.
No que toca mais precisamente a questão da apropriação, por
parte do alfabetizando, do sistema alfabético, ou, em outras palavras, a
tecnologia do ler e escrever, a autora ressalta a importância de algumas etapas
pelas quais o mesmo deverá passar, são elas: a teoria do casamento monogâmico
entre letra e som, a teoria da poligamia com restrições de posição, a
compreensão das partes arbitrárias do sistema alfabético e a necessidade de se
ensinar um pouco de morfologia.
A teoria do casamento monogâmico entre letra e som compreende
basicamente a relação biunívoca que algumas letras (f / v / b / p
/ d / t e a vogal a)
representam entre si, assim sendo, não importa a ordem ou a posição que as
mesmas apareçam em uma determinada palavra, pois sempre representarão seu som
específico.
Contrapondo-se a teoria da relação biunívoca, há a teoria da
poligamia, que, por sua vez, diz respeito, resumidamente, ao fato de que várias
letras podem representar um determinado som e que há vários sons para uma mesma
letra, dependendo, assim, da posição que as mesmas ocuparem dentro de uma
palavra.
No que tange as partes arbitrárias do sistema, Lemle
chama-nos a atenção para a questão de que esta etapa dura por toda a vida, pois
está estritamente ligada à questão da ortografia. Isto ocorre quando mais de
uma letra pode, na mesma posição, representar o mesmo som, assim, a opção pela
letra correta em uma palavra é, em termos fonológicos, inteiramente arbitrária,
ou seja, não há regras específicas que possa nos ajudar diante de tal impasse,
a solução, para tanto, é memorizar as palavras que apresentam essa
arbitrariedade.
Já no que diz respeito ao trabalho com a morfologia, a autora
destaca a importância de se ensinar, aos alunos, as regularidades ligadas à
morfologia das palavras, tanto o trabalho com os afixos, quanto com os prefixos,
pois atividades voltadas especificamente para os aspectos morfológicos ajudam,
segundo ela, na fixação da grafia correta das palavras.
Quanto ao conhecimento das variedades linguísticas, Lemle frisa
a importância de se respeitar a fala peculiar dos alunos e de não se cometer o
chamado preconceito linguístico, pois, além de ser um equívoco linguístico, é
também um desrespeito humano e um erro político dizer que determinados grupos
sociais falam errado, haja vista que geralmente essas pessoas não fazem parte
de um contexto sociocultural e socioeconômico favorável à padronização da língua
formal.
Miriam Lemle também destaca a necessidade de se olhar para os
erros de escrita dos alfabetizandos com certa atenção teórica, pois nos ajuda a
diagnosticar em qual etapa do processo de aquisição da leitura e da escrita os
mesmos se encontram. Para tanto, ela classifica os erros dos alunos em três
ordens: falha de primeira ordem, falha de segunda ordem e falha de terceira
ordem.
A falha de primeira ordem indica que o alfabetizando se
encontra na fase rudimentar da alfabetização, isto porque apresenta leitura
lenta e com soletração de cada sílaba e escrita apresentando erros de
correspondência letra-som.
A falha de segunda ordem, por seu turno, assinala que o
alfabetizando ainda se encontra na etapa biunívoca de correspondência entre
letras e sons, desse modo, o aluno comete erros de transcrição fonética, isto
é, escreve como se fala, e lê pronunciando cada letra e enfatizando o valor
central dos sons das letras.
Por fim, a falha de terceira ordem, a qual, em última
instância, avalia que o já alcançou o saber ortográfico e já domina, com
bastante propriedade, as correspondências entre fonemas e grafemas. Assim
sendo, suas falhas se limitarão a erros de arbitrários da língua portuguesa,
isto é, às trocas entre letras concorrentes. Constata-se, assim, que no que
compete à leitura, o aluno será capaz de pronunciar naturalmente as palavras,
sem maiores dificuldades.
Com relação à metodologia de ensino, percebe-se, na autora,
uma postura extremamente ética e coerente com sua formação acadêmica, uma vez
que ela, mesmo não tratando diretamente das questões metodológicas, por
acreditar ser uma área própria dos pedagogos, sugere que se trabalhe com as
crianças, no início da alfabetização, com letras que mantenham relações
biunívocas entre si, isto é, que correspondam unicamente a um determinado som e
vice-versa. Neste caso, deve-se dar preferência a vogal a e as consoantes p, b,
t, d, f e v. Lemle ressalta
que, com essas letras, podem ser formadas as primeiras palavras e frases, podendo,
inclusive, criar versinhos e musiquinhas.
Como proposta didático-pedagógica, é sugerido que se aplique
atividades que estimulem o interesse e a atenção das crianças, para tanto,
pode-se propor, aos educandos, joguinhos de palavras cruzadas, tomar melodias
conhecidas e cantarolá-las e diversas outras atividades que respeitem o nível
de desenvolvimento cognitivo dos alfabetizandos.
Ainda com relação ao aspecto metodológico, vale frisar que,
apesar de algumas crianças conseguirem fazer leitura por adivinhação, é tarefa do
professor alfabetizador ensinar os alunos a decodificarem as palavras, pois é
por meio da decodificação que se forma um leitor verdadeiramente autônomo.
No entanto, apesar de propor o que foi dito acima, a autora
sublinha que a língua escrita deve ser adquirida pelo mesmo mecanismo natural
que nos leva a adquirir a língua falada, portanto, constata-se certa
“naturalização”, por parte dela, com relação à metodologia de ensino, haja
vista que para ela é mais importante a familiarização das crianças com os
livros do que a defesa concreta de um método específico para alfabetizar.
Por fim, cabe destacar, aqui, a relevância desta obra para
nós, futuras professoras, a partir do momento em que sabemos que a boa ciência
sana a má consciência. Portanto, eis a nossa tarefa, árdua, sem dúvida, mas que
sempre pode ser aperfeiçoada e compartilhada com os que estão a nossa volta.
Referência:
LEMLE, M. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2009.