terça-feira, 21 de janeiro de 2014

TEQUILA, LIMÃO, CANELA E AÇÚCAR



Para Thauane Rocha e Carla Beatriz Campos.

Pense um pouco
Beba bastante
Depois me conte direito.
(Paulo Leminski)



Amiga, apesar da gente já ter conversado de tudo neste mundo, eu ainda fico meio sem jeito de perguntar certas coisas; não que estas sejam licenciosas tais como as putarias com as quais nos distraímos todos os dias, mas é que; não, na verdade não há nada de devasso nessas perguntas que quero fazer, mas é que, você sabe, o ser humano, mesmo tendo ciência de ser um ser fraco, não sabe encarar muito bem suas fraquezas, e acho que é isso, essas minhas perguntas revelam, até certo ponto, digo até certo ponto porque após ultrapassar essa fronteira, a do certo ponto, sei que elas evidenciam, em última instância, minha carência em alguma coisa, assim, como eu ia dizendo, essas minhas perguntas revelam algo de muito débil em mim; no entanto, como a garrafa de tequila já está abaixo da metade da metade, atrevo-me a compartilhar essas minhas perguntas com você, porque, no fundo, eu quero muito saber. Portanto, vou apagar a lâmpada da sala e deixar apenas a da varanda ligada, porque não quero que você me olhe enquanto eu estiver questionando; na verdade, você poderá me olhar, mas no escuro, porque no escuro seus olhos me olharão com os olhos de quem nada vê, ou pelo menos fingirão ver apenas o breu saindo de mim. E tem mais uma coisa: peço licença para deitar minha cabeça no seu colo e exijo que não mexa no meu cabelo, porque, enquanto eu estiver falando, quero seu corpo apenas como apoio, pois seu toque quebraria o seu papel de travesseiro que escuta, e então eu choraria muito e não saberia continuar. Antes de ficarmos no escuro, porém, também quero pedir para que não me interrompa, portanto só é para responder depois que eu ficar totalmente em silêncio, aí você desencarna o papel de travesseiro psicanalista e passa a ser você mesma, a menina doida que caiu da rede quando criança. Só mais outra coisa: antes de começar, proponho um brinde, só mais um shot de tequila com limão, açúcar e canela, pra ver se meu superego embebeda de vez e eu consigo finalmente perguntar tudo o que quero. Toma; aqui seu copo; um brinde a nós; e também ao Yudi e ao filho da puta do Zé que nos trocou por um orifício; e ao Marx, Stuart e Hegel; e também à pinguça da Aninha e à menina de black; por que você tá rindo? Vai, me fala! Por causa da menina de black? Eu também adoraria saber de onde ela tirou essa menina. Sabe, amiga, amanhã nem ela mesma vai acreditar que estava tendo visões; Gabi, você acredita em espíritos desencarnados? Há quem diga que essas coisas existem e que costumam aparecer para quem bebe muito, principalmente ela, que misturou tequila, cerveja, energético e uísque; não, tá doida? Pelo amor de deus, nada de Fenomenologia do Espírito agora! Eu também, tenho certeza que fico de exame em Filosofia; “se só o Absoluto é verdadeiro e se só o Verdadeiro é absoluto, isto é, se as partes são falsas e o Todo é verdadeiro, há verdade nas partes?”; eu não sei onde a gente tava com a cabeça que não respondeu “claro que há: a verdade está em você”; mas a gente pega ela na problematização do padeiro, aí eu quero ver ela me mostrar a verdade das partes; eu também, amiga, eu também; vou estudar tanto, mais tanto, que eu vou saber mais sobre luta de classes do que a ideologia alemã; vai, vamos beber; um, dois, a Ana acordou; aposto que vai perguntar mais uma vez se a mãe ligou; para de rir, garota do olho junto; deixa que eu vou lá, deixa, deixa; Gabriela, cadê o balde? Calma, Aninha, eu tô aqui; não, sua mãe não ligou, está tudo bem, nós lhe demos banho e você dormiu um pouco, foi isso o que aconteceu; não, você não é igual ao seu pai; que vergonha o quê, Ana! Somos seus amigos, você não está na casa de estranhos e está tudo bem; você quer água? Amiga, eu já te falei que a menina de black não existe, agora dorme que nós também já vamos dormir; não se preocupe, pois eu já limpei tudo, e não precisa pedir desculpa; a gente também tá doido para bater uma na cara, mas o negócio tá difícil, filha; isso, dorme, e qualquer coisa pode me chamar; Gabi, a Aninha vomitou só um pouquinho no seu quarto, o resto foi no balde mesmo; não, dessa vez ela não bebeu; está quase dormindo, deixei-a cantando o mantra da piroca com a xoxota; para de rir, garota mau caráter; o que diabo você fez com o bolo! Mas eu te falei pra não desinformá-lo quente, mas quem disse que você não me escuta; sem falar que caiu da rede quando bebê; vai, vamos virar logo o último shot, e apague a luz quando vier; você viu meu limão? Devo ter deixado no seu quarto; sim, mas não foi muito e amanhã eu limpo; traz outra banda de limão, amiga, sem açúcar; sim, com canela; deixa ele bem vermelho, como o batom daquela menina do bandejão; sim, bem ela; ei, eu te falei que a vi, esses dias, com um batom super roxo? Parecia que tinha bandejado salada de violeta; para de rir senão você derrama todo o shot; cuidado pra não pisar no notebook; vai, vamos virar; Como é mesmo a musiquinha? Sim, lembrei: arriba, abajo, al centro, adentro; Jesus, desceu rasgando tudo! Meu deus, a gente praticamente secou uma garrafa de tequila, tem noção? Vai, agora fique quieta que vou te contar, e não mexa no meu cabelo! É tão difícil perguntar isso; por favor, né, solta a porra do celular! Amanhã você conversa com o Yudi, o Bruno, o Igor, o garçom da Royal e a torcida do Palmeiras; está bem, do Flamengo; amanhã você conversa com o Emmanuel Yudi, o jogador de futebol que agora eu me esqueci do nome e a torcida do Mengão, mas preste atenção em mim, porra! Vai, agora é sério, chega de brincadeiras, pois o que eu tenho que perguntar é sério; não, não mexa no meu cabelo, tente ficar o mais distante de mim, mas deixe minha cabeça sobre suas coxas maravilhosas; sabia que todo homem quer te comer? Você é muito gostosa, Gabriela! Ei, finge que eu sou um objeto; não, para de rir, eu sei que não precisa fingir; faz o seguinte: invés de você ser um travesseiro com ouvidos, ponha-se no lugar de Freud ou Jung; melhor, finja que você é o Durkheim ou Radcliffe-Brown, e que agora estudará um indivíduo, que neste caso sou eu, e que você, cientista-positivista-conservadora-burguesa-capitalista, manter-se-á o mais longe do seu objeto de investigação; eu também adoro as mesóclises; agora é sério, sem mais enrolas: amiga, a pergunta é estranha, mas eu gostaria muito de saber o gosto de um beijo público; porque um beijo privado, entre quatro paredes, no sofá, no chão, na pia da cozinha, na cama, dentro do carro, debaixo do chuveiro, no corredor do quarto, eu sei, mas um beijo público, com pessoas olhando, tem gosto do quê? Aposto que não tem o mesmo sabor, porque o olhar em volta deve alterar alguma coisa, nem que seja a torcida da língua, a mão na nuca, o olho fechado, semifechado, aberto ou semiaberto. Não, eu disse que não é para você perguntar nada, lembra? Por enquanto é só pra escutar. Mas não, semifechado é bem diferente de semiaberto, assim como não-verdade é diferente de mentira; pois bem, como eu estava dizendo, que gosto tem um beijo vigiado? E o andar de mãos dadas, ao atravessar uma faixa de pedestres, qual a sensação? Sim, porque eu conheço o peso de uma mão dentro de um carro com vidros fumê, e também sei quanto pesa a mão dele quando estou sobre ele, isto é, quando nossas mãos ficam uma sobre a outra, presas, firmes, mas penso ser uma sensação totalmente diversa, totalmente diferente, o emaranhado dos dedos de uma mão que se entrecruzam com os dedos de uma outra mão ao descer uma escada rolante, por exemplo. E uma rosa vermelha, ganhada numa data especial, tem cheiro de quê?  Eu jamais disse isso a ninguém, e vou contar só a você e peço que guarde segredo: eu nunca recebi uma flor em toda minha vida e tenho maior vontade de tomá-la em minhas duas mãos, trazê-la próxima ao peito e cheirá-la levemente; mas tem que ser uma rosa, vermelha, bem vermelha, e tem que ser ganhada, senão não deve ter o mesmo perfume. Às vezes, quando escuto Exagerado, gosto de imaginar o Cazuza trazendo as suas mil rosas roubadas para mim. Amiga, mudando um pouco a pergunta, mas sem alterar o rumo da conversa, qual a sensação de ser apresentada aos amigos dele? Juro que passo noites, em claro, imaginando coisas do tipo: estamos, eu e ele, num barzinho tomando uma cerveja, o colega do trabalho ou amigo do cursinho aparece de repente, ele se levanta, puxa uma cadeira pro dito cujo, pede ao garçom mais um copo e diz: “este é meu namorado, é ele quem estuda tal curso, na universidade que te falei, bá-bá-bá-bi-bi-bi”, essas coisas, sabe? É sério, tenho muita vontade de saber como é se defrontar realmente com uma situação assim. Por fim, queria saber como é escutar “eu te amo” em frente à sogra, almoçar na casa da cunhada ou cunhado, brincar com os sobrinhos e assistir o Jornal Nacional ou São Paulo versus Corinthians com o pai do garotão; porque uma coisa é “eu te amo” quando estamos a sós, outra coisa é pedir uma pizza em casa, e outra, bem diferente, é assistir Café Filosófico ou Roda Viva na companhia dele. Parece que a Aninha acordou, me espera que já volto, prepare outro Shot, bem forte, com tequila e uísque, dessa vez com limão e sal, e pare de chorar, porque, apesar de tudo, o sol já tá nascendo outra vez e hoje já é um novo dia.


6 comentários:

  1. Também sonho com o dia em que todas as maiorias e minorias possam ser diferentes e tenham direitos iguais...

    Maravilhoso


    Mari

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    1. Mais uma vez, agradeço a sua visita e o seu comentário, Mari. E fico feliz por ter captado aquilo que eu realmente quis dizer; a princípio, quando fiz este monólogo, receei que a confusão do "álcool" atrapalhasse a mensagem final, pelo visto isto não aconteceu.
      Beijos.

      P. S. Espero ansioso o dia em que a "igualdade" será bem mais que uma palavra, um discuso, uma retórica.

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  2. E que esse dia chegue logo! Maravilhoso ED.

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  3. Como sempre, escrevendo maravilhosamente bem! E mostrando a verdade do seu jeito singular. Adorei amigo! Quero um livro seeeeeeuuuuuu!!!! kkkkkk Muita saudade!

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    1. Alana, sua linda, quanto tempo! Como eu tenho saudades de você! Obrigado pelo carinho e pelas palavras. Se um dia eu tiver um livro, você será uma das primeiras pessoas a quem o darei.
      Beijos...

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Assim que eu ler o seu comentário, responderei-o imediatamente. Grato pelo carinho.