Estou dentro do ônibus. Atrás de mim
há uma mulher cuja aparência física revela certa idade. Tal mulher carrega consigo
uma sacola de latinhas. Volta e meia ela toma as últimas gotas de refrigerante que
restaram do material recolhido. Na minha frente, mais especificamente no
corredor do ônibus, um rapaz oferece gomas de mascar no sabor de hortelã e
maracujá. A proprietária das latinhas, que está sentada logo atrás de mim, reza
uma Ave Maria. O moço dos chicletes acabou de descer. Em pé, bem perto de mim,
há um rapaz segurando um embrulho do McDonald’s.
Também em pé encontra-se todo um rebanho de trabalhadores cansados. Agora
entrou um pedinte no ônibus. Este não nos oferece nada, além de sua simpatia, como
mercadoria. A mulher atrás de mim interrompeu sua ladainha e falou consigo
mesma: “vai catar latinha!”. O moço, o pedinte, é negro, baixo e me lembra um
pigmeu. O rapaz, que carrega próximo ao peito o embrulho do lanche fetichista,
usa aparelho nos dentes e de vez em quando observa a minha mão correndo sobre o
papel. O papel, em questão, é meu texto de antropologia do Radcliffe-Brown. Escrevo,
por sinal, no verso da última folha. O pigmeu, pedinte, pede, a quem puder
ajudá-lo, a quantia de dez centavos. A proprietária das latinhas, que agora entoa
uma canção sobre mulheres, bebe um pouco d’água. O rapaz, de aparelho, que
carrega encostado sobre seu peito o embrulho do tal lanche, veste uma camisa
rosa que o deixa ainda mais atraente. Este também possui uma barba, de quatro a
cinco dias, que lhe confere uma melhor aparência. Ao meu lado direito, uma
moça, de uns vinte e poucos anos, lê um best-seller
sobre anjos e vampiros. O pigmeu está prestes a descer, mas não sem antes
eu e a leitora do meu lado lhe der duas moedas de cinquenta centavos. A mulher
atrás de mim, a catadora de latinhas, canta agora uma canção sertaneja, sobre
uma madrugada que passou e não volta mais. O ônibus agora está mais cheio. Lá
na frente, bem lá na frente, uma criança começou a vomitar. Alguém, pra variar,
acabou de dar sinal. O ônibus parou dentro do Terminal Metropolitano Cecap. A
mulher, das latinhas, cheira a lixo, cigarro e outros odores e usa uma sombra lilás
em suas pálpebras superiores. Uma jovem, com uma borboleta tatuada sobre seu
pulso direito, esbarrou no rapaz do lanche e me fez ver que este aparou recentemente os pelos de suas axilas. À
minha esquerda contemplo, neste breve momento, o Hotel Marriott. A leitora, sentada ao meu lado, tem uma bolsa do Mickey Mouse. Agora começou a chover. O
rapaz, do lanche, descerá no próximo ponto, e penso, para me distrair, como seria se eu estivesse
no ponto de ser o seu McLanche Feliz. Um ônibus, 732
– Jardim Angélica, acabou de ultrapassar o ônibus no qual me encontro. Mais
dois 732 ultrapassaram o 731. Passo, neste instante, em frente a
uma academia no Jardim Cumbica, e lembro-me, não sei por que, de um jovem que
morreu afogado em um lago. A chuva está engrossando mais e mais, mas aparenta ser
passageira. A mulher, proprietária das latinhas, bebe mais água e resmunga
alguma coisa consigo mesma. O cheiro do vômito me incomoda. O ônibus parou e
uma moça acabou de entrar com um bebê. Por hora ficaremos parados até alguém
ceder-lhe lugar. Eu poderia, tranquilamente, oferecer-lhe o banco no qual estou sentado,
mas me encontro no fundo, bem no fundo. Uma mulher pediu licença a uma outra mulher
que a olhou com antipatia. Metade dos passageiros usam fones de ouvido. Apesar
da distração, recordo-me agora do meu fracasso na prova de Ciência Política e
sei que preciso estudar, com maior dedicação, os contratualistas. Hoje é
aniversário do meu cunhado. Semana passada discutimos o conceito de vandalismo
e a função social dos presídios. Ele é um bom operário. Mas pensa como seu
patrão. Ensinei-lhe a função do banco de horas, mas ainda não aprendeu a lição.
Sem querer, cochilei um pouco, e quando acordei o ônibus já estava meio esvaziado.
A mulher das latinhas continua resmungando, mas já me acostumei com seu
monólogo arrastado. Uma mulher acabou de descer pela porta da frente e o cobrador, mesmo
recebendo sua passagem, não girou a catraca inocente. A proprietária das latinhas acabou
de me cutucar e pedir um trocado. Confessou-me que ainda não havia almoçado. Dei-lhe
uma moeda de um real. Quanto vale um prato de comida nessa vida? Daqui a três pontos será
a minha descida. Lá fora, agora, cai uma rala garoa. Lembro-me de Sampa, do Caetano, e com certeza
descerei do ônibus cantando.
Extraordinário! Gosto dos inscritos do cotidiano. Está muito, muito bom.
ResponderExcluirEu também gosto muito de inscritos assim: que, mesmo prezando a simplicidade, conseguem mostrar o cotiano de modo mais rico. Obrigado pelo carinho, Lane. Um beijão.
ExcluirMaravilhoso! Como sempre: arrasou!
ResponderExcluirParabéns, amigo"
Obrigado, Dessinha,
ExcluirTambém lembrei dessa trecho da música: - "Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
ResponderExcluirDa força da grana que ergue e destrói coisas belas."
Muito Muito Bom... Nada tão complexo como o cotidiano...
Mari
Esta música é realmente muito linda. Agradeço, mais uma vez, pelo carinho. Verdade: nada tão complexo como o cotidiano. Beijos.
ExcluirEd, eu fico realmente impressionada com sua capacidade de escrever de forma tão tocante e profunda.
ResponderExcluirHonestamente, a melhor coisa que li hoje.
Às vezes a inspiração se une à revolta e sai algo assim (risos). Agradeço o carinho, Jéssica.
ExcluirSaudações.
Deu até vontade de chorar...
ResponderExcluirMari
Fico feliz, risos. Abraço.
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