quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A VOLTA PRA CASA


Estou dentro do ônibus. Atrás de mim há uma mulher cuja aparência física revela certa idade. Tal mulher carrega consigo uma sacola de latinhas. Volta e meia ela toma as últimas gotas de refrigerante que restaram do material recolhido. Na minha frente, mais especificamente no corredor do ônibus, um rapaz oferece gomas de mascar no sabor de hortelã e maracujá. A proprietária das latinhas, que está sentada logo atrás de mim, reza uma Ave Maria. O moço dos chicletes acabou de descer. Em pé, bem perto de mim, há um rapaz segurando um embrulho do McDonald’s. Também em pé encontra-se todo um rebanho de trabalhadores cansados. Agora entrou um pedinte no ônibus. Este não nos oferece nada, além de sua simpatia, como mercadoria. A mulher atrás de mim interrompeu sua ladainha e falou consigo mesma: “vai catar latinha!”. O moço, o pedinte, é negro, baixo e me lembra um pigmeu. O rapaz, que carrega próximo ao peito o embrulho do lanche fetichista, usa aparelho nos dentes e de vez em quando observa a minha mão correndo sobre o papel. O papel, em questão, é meu texto de antropologia do Radcliffe-Brown. Escrevo, por sinal, no verso da última folha. O pigmeu, pedinte, pede, a quem puder ajudá-lo, a quantia de dez centavos. A proprietária das latinhas, que agora entoa uma canção sobre mulheres, bebe um pouco d’água. O rapaz, de aparelho, que carrega encostado sobre seu peito o embrulho do tal lanche, veste uma camisa rosa que o deixa ainda mais atraente. Este também possui uma barba, de quatro a cinco dias, que lhe confere uma melhor aparência. Ao meu lado direito, uma moça, de uns vinte e poucos anos, lê um best-seller sobre anjos e vampiros. O pigmeu está prestes a descer, mas não sem antes eu e a leitora do meu lado lhe der duas moedas de cinquenta centavos. A mulher atrás de mim, a catadora de latinhas, canta agora uma canção sertaneja, sobre uma madrugada que passou e não volta mais. O ônibus agora está mais cheio. Lá na frente, bem lá na frente, uma criança começou a vomitar. Alguém, pra variar, acabou de dar sinal. O ônibus parou dentro do Terminal Metropolitano Cecap. A mulher, das latinhas, cheira a lixo, cigarro e outros odores e usa uma sombra lilás em suas pálpebras superiores. Uma jovem, com uma borboleta tatuada sobre seu pulso direito, esbarrou no rapaz do lanche e me fez ver que este aparou recentemente os pelos de suas axilas. À minha esquerda contemplo, neste breve momento, o Hotel Marriott. A leitora, sentada ao meu lado, tem uma bolsa do Mickey Mouse. Agora começou a chover. O rapaz, do lanche, descerá no próximo ponto, e penso, para me distrair, como seria se eu estivesse no ponto de ser o seu McLanche Feliz. Um ônibus, 732 – Jardim Angélica, acabou de ultrapassar o ônibus no qual me encontro. Mais dois 732 ultrapassaram o 731. Passo, neste instante, em frente a uma academia no Jardim Cumbica, e lembro-me, não sei por que, de um jovem que morreu afogado em um lago. A chuva está engrossando mais e mais, mas aparenta ser passageira. A mulher, proprietária das latinhas, bebe mais água e resmunga alguma coisa consigo mesma. O cheiro do vômito me incomoda. O ônibus parou e uma moça acabou de entrar com um bebê. Por hora ficaremos parados até alguém ceder-lhe lugar. Eu poderia, tranquilamente, oferecer-lhe o banco no qual estou sentado, mas me encontro no fundo, bem no fundo. Uma mulher pediu licença a uma outra mulher que a olhou com antipatia. Metade dos passageiros usam fones de ouvido. Apesar da distração, recordo-me agora do meu fracasso na prova de Ciência Política e sei que preciso estudar, com maior dedicação, os contratualistas. Hoje é aniversário do meu cunhado. Semana passada discutimos o conceito de vandalismo e a função social dos presídios. Ele é um bom operário. Mas pensa como seu patrão. Ensinei-lhe a função do banco de horas, mas ainda não aprendeu a lição. Sem querer, cochilei um pouco, e quando acordei o ônibus já estava meio esvaziado. A mulher das latinhas continua resmungando, mas já me acostumei com seu monólogo arrastado. Uma mulher acabou de descer pela porta da frente e o cobrador, mesmo recebendo sua passagem, não girou a catraca inocente. A proprietária das latinhas acabou de me cutucar e pedir um trocado. Confessou-me que ainda não havia almoçado. Dei-lhe uma moeda de um real. Quanto vale um prato de comida nessa vida? Daqui a três pontos será a minha descida. Lá fora, agora, cai uma rala garoa. Lembro-me de Sampa, do Caetano, e com certeza descerei do ônibus cantando. 

10 comentários:

  1. Extraordinário! Gosto dos inscritos do cotidiano. Está muito, muito bom.

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    1. Eu também gosto muito de inscritos assim: que, mesmo prezando a simplicidade, conseguem mostrar o cotiano de modo mais rico. Obrigado pelo carinho, Lane. Um beijão.

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  2. Maravilhoso! Como sempre: arrasou!

    Parabéns, amigo"

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  3. Também lembrei dessa trecho da música: - "Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
    Da força da grana que ergue e destrói coisas belas."
    Muito Muito Bom... Nada tão complexo como o cotidiano...

    Mari

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    1. Esta música é realmente muito linda. Agradeço, mais uma vez, pelo carinho. Verdade: nada tão complexo como o cotidiano. Beijos.

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  4. Ed, eu fico realmente impressionada com sua capacidade de escrever de forma tão tocante e profunda.

    Honestamente, a melhor coisa que li hoje.

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    1. Às vezes a inspiração se une à revolta e sai algo assim (risos). Agradeço o carinho, Jéssica.
      Saudações.

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Assim que eu ler o seu comentário, responderei-o imediatamente. Grato pelo carinho.