Para Thauane Rocha e Carla Beatriz Campos.
Pense um pouco
Beba bastante
Depois me conte direito.
(Paulo Leminski)
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Amiga, apesar da gente já ter conversado
de tudo neste mundo, eu ainda fico meio sem jeito de perguntar certas coisas;
não que estas sejam licenciosas tais como as putarias com as quais nos distraímos
todos os dias, mas é que; não, na verdade não há nada de devasso nessas
perguntas que quero fazer, mas é que, você sabe, o ser humano, mesmo tendo
ciência de ser um ser fraco, não sabe encarar muito bem suas fraquezas, e acho
que é isso, essas minhas perguntas revelam, até certo ponto, digo até certo
ponto porque após ultrapassar essa fronteira, a do certo ponto, sei que elas evidenciam,
em última instância, minha carência em alguma coisa, assim, como eu ia dizendo,
essas minhas perguntas revelam algo de muito débil em mim; no entanto, como a
garrafa de tequila já está abaixo da metade da metade, atrevo-me a compartilhar
essas minhas perguntas com você, porque, no fundo, eu quero muito saber. Portanto,
vou apagar a lâmpada da sala e deixar apenas a da varanda ligada, porque não
quero que você me olhe enquanto eu estiver questionando; na verdade, você
poderá me olhar, mas no escuro, porque no escuro seus olhos me olharão com os
olhos de quem nada vê, ou pelo menos fingirão ver apenas o breu saindo de mim.
E tem mais uma coisa: peço licença para deitar minha cabeça no seu colo e exijo
que não mexa no meu cabelo, porque, enquanto eu estiver falando, quero seu
corpo apenas como apoio, pois seu toque quebraria o seu papel de travesseiro
que escuta, e então eu choraria muito e não saberia continuar. Antes de
ficarmos no escuro, porém, também quero pedir para que não me interrompa,
portanto só é para responder depois que eu ficar totalmente em silêncio, aí
você desencarna o papel de travesseiro psicanalista e passa a ser você mesma, a
menina doida que caiu da rede quando criança. Só mais outra coisa: antes de
começar, proponho um brinde, só mais um shot
de tequila com limão, açúcar e canela, pra ver se meu superego embebeda de vez
e eu consigo finalmente perguntar tudo o que quero. Toma; aqui seu copo; um
brinde a nós; e também ao Yudi e ao filho da puta do Zé que nos trocou por um orifício;
e ao Marx, Stuart e Hegel; e também à pinguça da Aninha e à menina de black; por que você tá rindo? Vai, me
fala! Por causa da menina de black? Eu
também adoraria saber de onde ela tirou essa menina. Sabe, amiga, amanhã nem
ela mesma vai acreditar que estava tendo visões; Gabi, você acredita em
espíritos desencarnados? Há quem diga que essas coisas existem e que costumam
aparecer para quem bebe muito, principalmente ela, que misturou tequila,
cerveja, energético e uísque; não, tá doida? Pelo amor de deus, nada de Fenomenologia do Espírito agora! Eu
também, tenho certeza que fico de exame em Filosofia; “se só o Absoluto é
verdadeiro e se só o Verdadeiro é absoluto, isto é, se as partes são falsas e o
Todo é verdadeiro, há verdade nas partes?”; eu não sei onde a gente tava com
a cabeça que não respondeu “claro que há: a verdade está em você”; mas a gente pega
ela na problematização do padeiro, aí eu quero ver ela me mostrar a verdade das partes; eu
também, amiga, eu também; vou estudar tanto, mais tanto, que eu vou saber
mais sobre luta de classes do que a ideologia alemã; vai, vamos beber; um,
dois, a Ana acordou; aposto que vai perguntar mais uma vez se a mãe ligou;
para de rir, garota do olho junto; deixa que eu vou lá, deixa, deixa; Gabriela,
cadê o balde? Calma, Aninha, eu tô aqui; não, sua mãe não ligou, está tudo bem,
nós lhe demos banho e você dormiu um pouco, foi isso o que aconteceu; não, você
não é igual ao seu pai; que vergonha o quê, Ana! Somos seus amigos, você não
está na casa de estranhos e está tudo bem; você quer água? Amiga, eu já te
falei que a menina de black não
existe, agora dorme que nós também já vamos dormir; não se preocupe, pois eu já
limpei tudo, e não precisa pedir desculpa; a gente também tá doido para bater
uma na cara, mas o negócio tá difícil, filha; isso, dorme, e qualquer coisa pode
me chamar; Gabi, a Aninha vomitou só um pouquinho no seu quarto, o resto foi no
balde mesmo; não, dessa vez ela não bebeu; está quase dormindo, deixei-a cantando o mantra da piroca com a xoxota; para de rir, garota mau caráter; o
que diabo você fez com o bolo! Mas eu te falei pra não desinformá-lo quente,
mas quem disse que você não me escuta; sem falar que caiu da rede quando bebê;
vai, vamos virar logo o último shot, e
apague a luz quando vier; você viu meu limão? Devo ter deixado no seu quarto;
sim, mas não foi muito e amanhã eu limpo; traz outra banda de limão, amiga, sem
açúcar; sim, com canela; deixa ele bem vermelho, como o batom daquela menina do
bandejão; sim, bem ela; ei, eu te falei que a vi, esses dias, com um batom super
roxo? Parecia que tinha bandejado salada de violeta; para de rir senão você
derrama todo o shot; cuidado pra não pisar no notebook; vai, vamos virar; Como é mesmo a musiquinha? Sim, lembrei: arriba,
abajo, al centro, adentro; Jesus, desceu
rasgando tudo! Meu deus, a gente praticamente secou uma garrafa de tequila, tem
noção? Vai, agora fique quieta que vou te contar, e não mexa no meu cabelo! É
tão difícil perguntar isso; por favor, né, solta a porra do celular! Amanhã
você conversa com o Yudi, o Bruno, o Igor, o garçom da Royal e a torcida do Palmeiras; está bem, do Flamengo; amanhã você
conversa com o Emmanuel Yudi, o jogador de futebol que agora eu me esqueci do
nome e a torcida do Mengão, mas preste atenção em mim, porra! Vai, agora é sério,
chega de brincadeiras, pois o que eu tenho que perguntar é sério; não, não mexa
no meu cabelo, tente ficar o mais distante de mim, mas deixe minha cabeça sobre
suas coxas maravilhosas; sabia que todo homem quer te comer? Você é muito
gostosa, Gabriela! Ei, finge que eu sou um objeto; não, para de rir, eu sei que
não precisa fingir; faz o seguinte: invés de você ser um travesseiro com
ouvidos, ponha-se no lugar de Freud ou Jung; melhor, finja que você é o
Durkheim ou Radcliffe-Brown, e que agora estudará um indivíduo, que neste caso
sou eu, e que você, cientista-positivista-conservadora-burguesa-capitalista,
manter-se-á o mais longe do seu objeto de investigação; eu também adoro as
mesóclises; agora é sério, sem mais enrolas: amiga, a pergunta é estranha, mas eu
gostaria muito de saber o gosto de um beijo público; porque um beijo privado,
entre quatro paredes, no sofá, no chão, na pia da cozinha, na cama, dentro do carro,
debaixo do chuveiro, no corredor do quarto, eu sei, mas um beijo público, com
pessoas olhando, tem gosto do quê? Aposto que não tem o mesmo sabor, porque o
olhar em volta deve alterar alguma coisa, nem que seja a torcida da língua, a
mão na nuca, o olho fechado, semifechado, aberto ou semiaberto. Não, eu disse
que não é para você perguntar nada, lembra? Por enquanto é só pra escutar. Mas
não, semifechado é bem diferente de semiaberto, assim como não-verdade é diferente de mentira; pois bem, como eu estava
dizendo, que gosto tem um beijo vigiado? E o andar de mãos dadas, ao atravessar
uma faixa de pedestres, qual a sensação? Sim, porque eu conheço o peso de uma
mão dentro de um carro com vidros fumê, e também sei quanto pesa a mão dele quando
estou sobre ele, isto é, quando nossas mãos ficam uma sobre a outra, presas, firmes,
mas penso ser uma sensação totalmente diversa, totalmente diferente, o
emaranhado dos dedos de uma mão que se entrecruzam com os dedos de uma outra
mão ao descer uma escada rolante, por exemplo. E uma rosa vermelha, ganhada
numa data especial, tem cheiro de quê? Eu
jamais disse isso a ninguém, e vou contar só a você e peço que guarde segredo:
eu nunca recebi uma flor em toda minha vida e tenho maior vontade de tomá-la em
minhas duas mãos, trazê-la próxima ao peito e cheirá-la levemente; mas tem que
ser uma rosa, vermelha, bem vermelha, e tem que ser ganhada, senão não deve ter
o mesmo perfume. Às vezes, quando escuto Exagerado,
gosto de imaginar o Cazuza trazendo as suas mil rosas roubadas para mim. Amiga,
mudando um pouco a pergunta, mas sem alterar o rumo da conversa, qual a sensação
de ser apresentada aos amigos dele? Juro que passo noites, em claro, imaginando
coisas do tipo: estamos, eu e ele, num barzinho tomando uma cerveja, o colega
do trabalho ou amigo do cursinho aparece de repente, ele se levanta, puxa uma
cadeira pro dito cujo, pede ao garçom mais um copo e diz: “este é meu namorado,
é ele quem estuda tal curso, na universidade que te falei, bá-bá-bá-bi-bi-bi”,
essas coisas, sabe? É sério, tenho muita vontade de saber como é se defrontar
realmente com uma situação assim. Por fim, queria saber como é escutar “eu te
amo” em frente à sogra, almoçar na casa da cunhada ou cunhado, brincar com os
sobrinhos e assistir o Jornal Nacional
ou São Paulo versus Corinthians com o
pai do garotão; porque uma coisa é “eu te amo” quando estamos a sós, outra coisa
é pedir uma pizza em casa, e outra,
bem diferente, é assistir Café Filosófico
ou Roda Viva na companhia dele.
Parece que a Aninha acordou, me espera que já volto, prepare outro Shot, bem forte, com tequila e uísque, dessa
vez com limão e sal, e pare de chorar, porque, apesar de tudo, o sol já tá
nascendo outra vez e hoje já é um novo dia.